Enquanto o Brasil ainda está definindo sua abordagem no tocante à inteligência artificial (IA), os Estados Unidos tomaram a dianteira. Com uma estratégia clara, o país está trilhando um caminho para se estabelecer como um líder no desenvolvimento e na compreensão dos desafios e oportunidades que a IA apresenta. Para atingir tal objetivo, o presidente Joe Biden emitiu recentemente a Ordem Executiva sobre Inteligência Artificial, ancorada em compromissos voluntários previamente estabelecidos pela Casa Branca junto a empresas líderes no setor.
A Ordem Executiva representa, sem dúvida, um passo anterior fundamental a uma regulamentação mais detalhada que poderia, potencialmente, engessar e burocratizar o desenvolvimento da tecnologia no país. Desde já, a iniciativa é reconhecida como um dos conjuntos mais robustos de ações tomadas por qualquer governo global em relação à IA. Não se trata apenas de uma incursão significativa do governo americano no universo da tecnologia, mas também da definição de novas práticas e diretrizes em áreas estratégicas, como segurança, equidade, direitos civis e pesquisa sobre o impacto da IA no mercado de trabalho, como se verá a seguir.
De início, há uma série de novos padrões de segurança para a área de IA. Diante do aumento dos riscos potenciais associados à expansão das capacidades da IA, a Ordem Executiva apresenta medidas inéditas para proteção dos cidadãos americanos, entre elas:
a) exigência de que os desenvolvedores dos sistemas de IA mais relevantes, como os que representam sérios riscos à segurança pública nacional e econômica ou à saúde pública, compartilhem resultados de testes de segurança e informações críticas com o governo dos EUA durante o treinamento do modelo;
b) desenvolvimento de padrões rigorosos, ferramentas e testes pelo Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST), visando garantir a segurança dos sistemas;
c) proteção contra riscos associados ao uso da tecnologia na engenharia de materiais biológicos perigosos, estabelecendo padrões robustos para triagem de síntese biológica;
d) estabelece padrões para detecção e autenticação de conteúdo gerado por IA de modo a mitigar riscos de fraudes e quebra de expectativas impulsionadas pela IA, tal como recentemente anunciado pelo YouTube.
Como o uso de IA ocasiona um volume maior no tratamento de dados pessoais, a Ordem Executiva também traz ações para proteger a privacidade dos americanos. Biden insta o Congresso a aprovar legislação bipartidária de privacidade de dados, a fim de proteger os cidadãos americanos, com especial atenção às crianças, além de direcionar ações para priorizar o apoio federal ao desenvolvimento de técnicas de preservação da privacidade, incluindo aquelas que utilizam IA avançada para treinar sistemas.
Ainda, a iniciativa fortalece as pesquisas e tecnologias que respeitam a proteção de dados pessoais, avalia a coleta e uso de informações comercialmente disponíveis por agências federais e estabelece diretrizes para a avaliação da eficácia de técnicas de preservação do direito, incluindo aquelas empregadas em sistemas de IA.
Sob o aspecto da equidade e dos direitos civis, há orientações claras para impedir o uso de algoritmos de IA que agravem a discriminação em âmbito governamental, propondo a abordagem do tema por meio de treinamento, assistência técnica e coordenação entre o Departamento de Justiça e outros entes da Administração Pública. A busca pela equidade no sistema de justiça criminal inclui desenvolver melhores práticas para o uso de IA em diversas fases da investigação e processo, de forma a assegurar que a tecnologia promova a justiça e o respeito aos direitos civis, e não o contrário.
Com o objetivo de defender consumidores, pacientes e estudantes, a Ordem Executiva elenca medidas que buscam garantir que a IA os beneficie, mitigando possíveis danos ou abusos. No âmbito da saúde, propõe o uso responsável da tecnologia para impulsionar o desenvolvimento de medicamentos acessíveis e salvadores de vidas, estabelecendo um programa de segurança para abordar danos ou práticas inseguras na área. Em educação, o foco é dar forma ao seu potencial transformador, fornecendo recursos para apoiar educadores na implementação de ferramentas habilitadas por IA.
Ainda que se entenda que o futuro do emprego não seja tão radical quanto a visão trazida por Elon Musk, que recentemente projetou eventual e total obsolescência dos empregos diante da capacidade da IA realizar todas as tarefas, os impactos sob o mercado de trabalho são inquestionáveis. Diante disso, a Ordem traz ações que visam desenvolver princípios e medidas para mitigar danos e maximizar benefícios da IA para os trabalhadores, como a substituição de empregos tradicionais ocasionados pelo uso da tecnologia, diretrizes sobre como a IA deve ser integrada ao ambiente de trabalho, equidade no local de trabalho, saúde e segurança dos colaboradores e coleta de dados que utilizem a IA. Adicionalmente, o governo compromete-se a produzir um relatório sobre os impactos potenciais da IA no mercado de trabalho, incluindo aqueles decorrentes da implementação da tecnologia.
Objetivando que os Estados Unidos sigam como um dos líderes em inovação no campo da IA, há medidas de promoção da inovação e da concorrência, incluindo o estímulo à pesquisa em IA no país através de um piloto do Recurso Nacional de Pesquisa (National AI Research Resource), que proporcionará acesso a recursos e dados para pesquisadores e estudantes na seara, sobretudo, em áreas essenciais como saúde e mudanças climáticas.
Cabe destacar também a busca por um ecossistema de IA justo, aberto e competitivo, com assistência técnica e recursos a pequenos desenvolvedores e empreendedores. Em um movimento curioso que contraria a política anti-imigração americana – que até então foi mantida por Biden apesar de uma campanha eleitoral favorável à imigração –, o governo busca ampliar as oportunidades para estrangeiros altamente qualificados especializados em áreas críticas para estudar, permanecer e trabalhar no país, modernizando e simplificando critérios, entrevistas e avaliações de vistos.
Com o reconhecimento de que os desafios e oportunidades da IA transcendem fronteiras, a administração Biden-Harris compromete-se a fortalecer a liderança dos Estados Unidos no cenário internacional. O Presidente orienta a expansão de parcerias bilaterais e multilaterais para colaboração na linha do transadministrativismo.
Para assegurar o uso responsável e eficaz da IA pelo governo americano, há iniciativas voltadas para a emissão de orientações que estabeleçam padrões claros, visando proteger direitos e segurança, melhorar a aquisição e fortalecer a implementação de IA nas agências governamentais. O plano inclui também medidas para facilitar a aquisição mais rápida e eficiente de produtos e serviços de IA, bem como acelerar a contratação de profissionais especializados na tecnologia.
Com efeito, fica claro que a Ordem Executiva publicada por Biden traz uma abordagem diferenciada, afastando-se de estrutura fechada com exigências rigorosas para o governo ou para as empresas que fazem uso da tecnologia. E isso não é por acaso. O Poder Executivo americano busca, de forma inteligente através do ato administrativo, promover o uso de IA de forma responsável, afastando-se do modus operandi de muitos países, que propuseram até então regulamentações com exigências de difícil operacionalização, como o EU AI Act já aprovado pelo Parlamento Europeu e o Projeto de Lei de IA apresentado no Brasil, alvo de críticas pelos grandes players do mercado.
Ainda que esteja longe de ser uma regulamentação robusta, a abrangência e simplicidade da Ordem Executiva devem ser aplaudidas ao contribuir substancialmente com princípios e diretrizes que deveriam ser seguidos pelos países e por aqueles que trabalham com a tecnologia.
A lição que o Brasil pode extrair da Ordem Executiva é que, em um campo tão inovador e em constante evolução, adotar uma postura mais cautelosa e ponderada, sem prematuramente buscar esgotar o tema, pode resultar em avanços futuros mais significativos para o alcance do equilíbrio entre as disposições de IA responsável e o desenvolvimento da economia digital.
Por outro lado, as regulamentações precipitadas que se concentram em proibições, categorizações e exigências acabam por estabelecer um obstáculo ao progresso das tecnologias emergentes e, por consequência, ao desenvolvimento econômico.
Nesse sentido, uma abordagem mais flexível – como a adotada recentemente pelos Estados Unidos – destaca-se como um modelo promissor e vanguardista para lidar com os desafios e oportunidades oferecidos pela inteligência artificial nos dias atuais, aproximando os players do mercado em desenvolvimento, sem desconsiderar, contudo, questões importantes como segurança, equidade, direitos civis e pesquisa sobre o impacto da IA no mercado de trabalho.