O economista-chefe do STF e o risco do consequencialismo malandro

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Ainda antes de tomar posse como presidente do STF, o ministro Luís Roberto Barroso anunciou que contrataria um economista para assessorá-lo, uma iniciativa inédita na história da corte.

O indicado para o posto foi o economista Guilherme Mendes Resende, pesquisador concursado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) desde 2004, com ampla formação e experiência, tendo sido economista-chefe do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) entre 2016 e 2023, quando foi para o STF. O presente texto não aborda propriamente a formação, o currículo ou a pessoa do assessor especial da presidência do STF, os quais, frise-se, são da mais alta monta.

Além disso, a novidade não é de todo negativa e foi elogiada aqui, por exemplo. De fato, direitos não nascem em árvores e a análise econômica pode oferecer dados importantes em termos de custos e incentivos gerados por decisões judiciais. Inclusive, o próprio ordenamento jurídico incorporou para os julgadores a obrigação de considerar as consequências práticas da decisão (art. 20 da LINDB).

O cargo de assessor econômico foi criado de forma institucional, o que esvazia, em parte, a saraivada de críticas que o ministro Luiz Fux recebeu, por exemplo, ao confessar durante a pandemia que telefonava para experts de sua confiança antes de tomar determinadas decisões: “Eu mesmo, na minha cadeira no Supremo Tribunal Federal, faço do meu telefone e de ofícios de prazos exíguos (24 ou 48 horas) instrumento para complementar conhecimento de outras ciências para as quais não fui preparado profissionalmente antes de decidir”.

Uma leitura apressada poderia concluir pela virtuosidade dessa preocupação com a formação de uma base epistemológica interdisciplinar mínima, necessária para a tomada de decisões judiciais. O cerne das críticas, no entanto, estava na obscuridade desse procedimento de consulta do ministro Fux, pois não se sabia quem eram os experts, o que lhe disseram, como eles chegaram às suas conclusões etc. E o mais grave: essas razões não foram para os autos e não se sabe o peso que tiveram para a decisão.

Consultas informais dessa natureza aumentam a discrepância entre o contexto da descoberta e o contexto de justificação. Como sabido, o contexto da descoberta é o conjunto de elementos fáticos, sociológicos, históricos e psicológicos que explicam como se chega a uma hipótese, teoria ou, no caso do juiz, a uma decisão. Já o contexto de justificação diz respeito à forma como tal hipótese, teoria ou decisão é justificada ante a comunidade.

Entre os ideais regulativos de um Estado de Direito está precisamente o de que o contexto da descoberta não destoe muito do contexto de justificação. É dizer, não deve haver razões ocultas, que não foram publicizadas expressamente como razões para decidir. Se determinadas informações tiveram um papel importante, por que deixá-las de fora da fundamentação?

A ideia de justificação das decisões judiciais está relacionada ao dever de oferecer razões que demonstrem o caráter aceitável ou correto da decisão. Se o exame das consequências cumpre uma função importante e se cada vez mais se deve olhar para a distribuição dos impactos, então essas considerações deveriam constar dos autos e serem explicitadas na decisão.

Ocorre que, no caso da assessoria econômica da presidência do STF, atualmente, as notas-técnicas elaboradas pelo economista-chefe são somente para consumo interno dos ministros e não estão disponíveis no site do STF. Dessa forma, ainda é pouco o avanço institucional do cargo de economista-chefe em comparação à consulta do expert por telefone. E mesmo a promessa de que no futuro algumas das suas notas-técnicas poderão ser divulgadas é insuficiente: a transparência precisa ser total, até para oportunizar contradita. Explica-se.

A declaração escrita de terceiros (na qual se incluem os pareceres de autoridades e sumidades no tema) são aceitos como prova pela prática judicial porque o art. 369 do CPC expressamente consagra o princípio da atipicidade das provas, admitindo o emprego de todos os meios lícitos – ainda que não previstos em lei – passíveis de influir na convicção do julgador. Também o art. 375 do CPC permite que o decisor se valha das regras da experiência comum e da experiência técnica.

No entanto, não se pode olvidar que o art. 371 do CPC obriga que o julgador indique sempre na fundamentação da decisão as razões de seu convencimento, independentemente do sujeito processual que houver promovido a prova. É dizer, ainda que seja o próprio ministro do STF quem haja obtido, de ofício, uma nota, estudo técnico ou parecer sobre alguma questão, ele está obrigado a expor isso na decisão. E não apenas. Qualquer prova, ainda que produzida em outro processo, deve observar o contraditório pelo art. 372 do CPC.

Para assegurar o princípio do contraditório vazado no art. 7º do CPC, é conditio sine qua non que tudo aquilo que possa influir na convicção do juiz previamente haja sido objeto de vista e oportunidade de manifestação à parte contrária ou a todas as partes, quando produzida de ofício pelo julgador, conforme a literalidade do art. 10 do CPC.

Na prática, o economista-chefe do STF tem sido ouvido como um expert, funcionando como um perito acionado para mensurar as consequências econômicas dos diversos cursos de decisões possíveis do STF. Mas daí vem a pergunta: por que não aplicar logo o art. 9º da Lei nº 9.868/1999 ou o art. 6º da Lei 9.882/1999? Tais dispositivos preveem que o relator pode designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.

Mesmo com o descumprimento das formalidades mencionadas, vislumbra-se que a criação implica o esvaziamento parcial de outro problema: o que o Conrado Hübner Mendes chamou de “consequenciachismo”, juízos com base no puro wishful thinking, intuição ou palpites do próprio magistrado. Em tese, as notas técnicas do expert são elaboradas com dados empíricos e rigor metodológico.

Ocorre que todo perito usa determinadas premissas, o que, em se tratando de uma ciência não exata como a economia, assume relevância.

Ora, a partir do momento em que outro economista pode, analisando o mesmo fenômeno, chegar a conclusões diferentes – e não obrigatoriamente estar errado (pois muito depende da sua escola de pensamento, há várias teorias econômicas) –, vê-se que a análise econômica não necessariamente é clara ou precisa. Daí que a simples institucionalização de um assessor especial econômico não é o suficiente para resolver os problemas do déficit epistêmico da corte e ainda pode criar outros, como o enviesamento de que se comenta.

A situação remete diretamente ao que o professor Luis Fernando Schuartz chamou de consequencialismo malandro. Em seu célebre artigo “Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem” (uma leitura obrigatória sobre esse assunto), o autor adota uma noção ampla de consequencialismo – trata-se de “(…) qualquer programa teórico que se proponha a condicionar, ou qualquer atitude que condicione explícita ou implicitamente a adequação jurídica de uma determinada decisão judicante à valoração das consequências associadas à mesma e às suas alternativas” (p. 130-1).

Schuartz apresenta três tipos ideais de um consequencialismo jurídico à brasileira: o “festivo”, o “militante” e o “malandro”. Essa última modalidade – a que interessa para refletir sobre a criação do cargo de economista-chefe do STF – é a mais sofisticada de todas e costuma ser utilizada como estratégia argumentativa quando o direito positivo, tal como interpretado e aplicado, não oferece a desejada justificação de uma decisão judicial. É dizer, recorre-se à modalidade malandra quando se considera que as regras são inadequadas, implicando decisões injustas ou contrárias a valores progressistas (p. 156).

Por intermédio do consequencialismo malandro, na decisão, constroem-se conceitos e distinções (em relação ao que está positivado), que sejam adequados ao caso concreto e pareçam desde sempre juridicamente admissíveis. Na prática, tal modalidade de consequencialismo cria direito onde direito não há e – para repetir a analogia utilizada pelo próprio Schuartz – esgarça o tecido da dogmática jurídica.

Ainda assim, o consequencialismo malandro se pretende dogmático, ao revelar a solução fundamentando-a como se dentro da regra estivesse e, mais, com pretensão de generalidade, permitindo sua aplicação em casos futuros.

Pois bem. A reportagem do Brazil Journal dá conta de que o assessor especial econômico da presidência do STF vem contribuindo para o desfecho de diversos julgados, como o da “revisão da vida toda” do INSS, extinção de execução fiscal de pequeno valor etc.

Para comentar só um desses casos, cite-se a mudança de voto do ministro Barroso no caso da ADI 5.090, ajuizada pelo partido político Solidariedade pleiteando que a correção dos depósitos nas contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) deixe de ser feita pela TR + 3% a.a. como está previsto na legislação e passe a ser realizada IPCA-E, pelo INPC/IBGE ou por outro índice de inflação ao talante discricionário do STF.

Na sessão do dia 20 de abril de 2023, o ministro relator Luís Roberto Barroso tinha votado julgando parcialmente procedente o pedido, a fim de interpretar conforme a CF os dispositivos impugnados, para declarar que a remuneração das contas do FGTS não pode ser inferior à da caderneta de poupança. Nesse seu primeiro voto, chegou a estabelecer que os efeitos da decisão seriam produzidos prospectivamente, a partir da publicação da ata de julgamento. Após, o julgamento foi suspenso.

Daí, na sessão do dia 9 de novembro de 2023, resolveu-se que a decisão só deve produzir efeitos para depósitos efetuados a partir de 2025, com uma regra de transição aplicável em 2023 e 2024. O julgamento ainda não foi finalizado, e está suspenso por pedido de vista do ministro Cristiano Zanin.

A questão que emerge do caso é a seguinte: a fixação de índices de remuneração é uma clara atribuição do Legislativo. A incorporação da retórica das consequências – ainda mais quando feita de forma inconsistente – não se presta a substituir o juízo da ponderação legislativa plasmada nas escolhas da lei. Não basta ouvir só economistas, é preciso ouvir também o Legislativo e o Executivo, sob pena de mais uma má incorporação da análise econômica pelo Direito, no estilo do consequencialimo malandro de Luis Fernando Schuartz.