A tentativa de aprimorar a falência é importante e por isso não estamos alinhados com aqueles que entendem que a reforma de 2020 é recente – o que inviabilizaria novos ajustes.
Aprimoramentos realmente se justificam porque as mudanças à falência trazidas pela Lei 14.112/20 não ofereceram ao devedor uma solução definitiva para o encerramento regular e consequente reinserção à sua atividade econômica e vida social; ao passo que, não atende ao credor pois não serve como forma de recuperação ainda que parcial de seu crédito.
Exemplo disso é que a recente reforma fixou regras de liquidação de ativos em 180 dias, mas são poucos os casos em tal prazo é respeitado. Na realidade, a falência continua morosa e ineficaz. Inúmeras falências que já deveriam estar extintas continuam assoberbando o Judiciário. Logo, acertada a exposição de motivos do PL 3/2024 que estabelece como objetivo da falência ordenar a liquidação de empresas inviáveis, recuperando créditos e mitigando danos aos envolvidos e que a legislação deve “aprimorar a governança do processo falimentar, ampliando a participação dos credores”.
A norma atual gera danos diretos, como a permanência no mercado de empresas inviáveis que retardam sua liquidação e; indiretos, por transformarem planos de recuperação judicial abusivos em alternativas econômicas mais atrativas do que a falência. Mas a pergunta que fica é: o PL 3/2024 atingiu tal propósito?
Na nossa visão a resposta é “não”.
Fazendo referência à frase atribuída ao filósofo John Dewey, “um problema bem definido já é metade da solução” e para sabermos se o PL 3/2024 resolve os problemas da falência, precisamos saber quais são os eles.
A exigência de quitação de tributos e a necessidade de maior celeridade para a alienação de ativos certamente são fatores relevantes e peremptoriamente ignorados pelo PL 3/2024.
Os avanços trazidos pela Lei 14.112/20 permitiram o encerramento célere da falência sem ativos e aprimoraram a possibilidade de exoneração das obrigações dos devedores, mas essa é uma espécie de fresh start tupiniquim.
Explica-se. O art. 191 do Código Tributário Nacional condiciona o encerramento da falência à prova de quitação dos tributos, causando efeito perverso. Afinal, a obrigação do fisco receber integralmente seu crédito, poderia ter como consequência a obrigação também de quitação de todos os credores mais privilegiados que o fisco, o que inviabiliza o instituto sob o aspecto financeiro, ou ter-se-ia que aceitar que o fisco, credor menos privilegiado, recebesse o seu crédito, em detrimento de credores que estão a sua frente, o que seria uma aberração.
Dessa forma, uma reforma definitiva e eficiente deve prever a revogação do art. 191 do CTN, o que não é o caso do PL 3/24.
Os mecanismos estabelecidos para a maximização dos ativos é outro ponto sensível que mereceria revisão. A Lei 14.112/20 criou processo mais célere de venda d, além de permitir a realização de leilões que, caso infrutíferos, possam decorrer na venda a qualquer preço de bens. O PL 3/24, também, traz avanços ao possibilitar que o plano de falência preveja a dispensa de avaliação de ativos.
Em nossa opinião, o projeto poderia ser mais ousado, no sentido de que a dispensa de avaliação fosse a regra geral e a necessidade de avaliação a exceção, devendo essa exceção ser admitida somente quando fundamentados os benefícios almejados com a avaliação e mensurados os custos e a fonte de recursos para o seu custeio.
O projeto poderia prever que os ativos fossem alienados em leilão realizado, em duas chamadas, no mesmo dia: Na primeira, por no mínimo por seu valor contábil e na segunda, por qualquer preço.
Pela nossa experiência, o melhor avaliador de um ativo é o mercado. Ele saberá dizer se há interessados e quanto se está disposto a pagar por este ativo.
A dispensa da avaliação combinada com o leilão realizado no mesmo dia, com a possibilidade de venda a preço zero, traria maior celeridade e reduziria o contencioso e custo sobre o processo.
A revogação de prazo entre as chamadas poderia ser compensada com prazo de divulgação mais dilatado e com sua ampla publicização através da internet e redes sociais, para atrair mais interessados.
Além disso, ainda se faz necessária a inclusão de regramentos que garantam maior segurança jurídica aos adquirentes, como por exemplo, com a garantia de que ao adquirir um bem, o adquirente não pagará nada mais do que o valor da arrematação e que todos os custos e eventuais contingências já estão nele embutidos; que a posse e a propriedade serão transferidas imediatamente ao adquirente, além de prever mecanismos para estimular às operações de financiamento de aquisição de tais ativos, podendo tais bens serem dados em garantia nessas operações.
No nosso entendimento, a maximização com a venda de ativos está diretamente relacionada à maior participação do número de interessados, o que somente será possível, com ampla divulgação, procedimento célere, menos custoso e maior segurança aos adquirentes e aos seus financiadores. Infelizmente essas não foi uma preocupação do PL 3/24.
Há outras inúmeras alterações sugeridas no PL 3/24 que não parecem atingir o objetivo almejado, como: as ampliações das funções do Comitê de Credores, critérios subjetivos como o de “amigo” e “inimigo” na composição do Comitê; a proteção exacerbada do fisco, como a criação de classe específica para a Fazenda participar das deliberações assembleares.
Trata-se de propostas que aparentemente não atendem a melhor técnica legislativa e que conflitam com sua própria exposição de motivos.
Importante, ainda, nos atentar com maior vagar para a proposta de criação do “plano de falência” e inserção da figura do “gestor judicial”.
Parece-nos acertada a ideia de se criar um plano de falência, similar ao plano de recuperação judicial e que a sua escolha deve estar centrada nos principais credores da falência que seriam beneficiados com os ativos existentes e que, atualmente, acabam perdendo esse benefício em face da morosidade na alienação, que sucateia os ativos e torna os recursos recuperáveis quase irrisórios, a ponto de não bastarem para a satisfação dos encargos da massa.
De qualquer forma, a criação do plano de falência, ainda que interessante, nos parece prematura pois ainda não sabemos os efeitos da Lei 14.112/2020 que passou a prever, de forma positiva, a obrigação do administrador judicial em apresentar dentro de 60 dias plano detalhado de realização de ativos em prazo não superior a 180 dias.
Nessa linha, embora o plano de falência tenda a ser algo mais complexo e atingir outras frentes, o correto seria dar um tempo maior para entender se o plano de realização de ativos será bem trabalhado e, em caso negativo, as razões pelas quais isso não está ocorrendo, sejam elas atreladas ao trabalho moroso do administrador judicial, omissão do juízo ou falta de mecanismos para interferência dos credores.
A criação do “gestor judicial”, um agente de mercado especializado, é interessante. Mas há também que se constatar que o administrador judicial já tem na letra atual poderes para nomear assessores, que poderiam se concentrar na liquidação célere e de qualidade.
Em casos falimentares mais complexos e com elevado volume de ativos, a morosidade em uma solução, perpassa por uma célere e qualitativa alienação de ativos, ou seja, vender rápido, mas vender bem. Nesta janela de incompetência, a figura do gestor judicial pode vir a ser uma solução, mas se não for bem tratada pela legislação, pode ser objeto de conflito de atribuições com o administrador judicial, conflito que gera custo e retardar o processo. Ou seja, o tiro pode sair pela culatra.
A primeira impressão sobre o PL 3/24 é positiva, pois enxerga na falência o principal ponto de aprimoramento do sistema concursal. Entretanto, como é de se esperar em um processo democrático, o texto proposto deve ser objeto de debates e aprimoramentos, que deveriam contemplar a revogação da obrigatoriedade de quitação de tributos e a garantia jurídica aos processos de alienação de ativos e aguardar um amadurecimento de regras criadas em 2020.