Governo ganha um segundo mandato consecutivo em meio a um estado de emergência e esmaga a oposição projetando obter mais de 95% das cadeiras no parlamento em país das Américas assolado pelo crime organizado. Essa notícia é o sonho de segmentos antidemocráticos brasileiros, mas se trata da realidade de El Salvador, país centro-americano onde o presidente de extrema direita Nayib Bukele conquistou a vitória esmagadora descrita acima no último domingo (4).
O triunfo do Estado sobre os cartéis fora da lei envolvidos sobretudo em tráfico de entorpecentes deu-se ao custo de violações de direitos humanos e um crescente controle do Executivo sobre o Judiciário, inclusive. Independentemente das posições individuais que possamos ter acerca da fórmula Bukele — e este que lhes escreve repudia veementemente soluções inconstitucionais e/ou que abram margem para a tirania do Estado —, cabe analisar à luz de conceitos de ciência política quais são os elementos centrais à concentração de poder empreendida por aquele que já virou modelo para o populismo autoritário de direita do século 21.
Nota-se em primeiro lugar que Bukele não enfrentou os freios e contrapesos institucionais que Javier Milei hoje enfrenta na Argentina, com a desidratação via parlamento e Suprema Corte da chamada Lei Ônibus, aprovada no último fim de semana e que originalmente lhe outorgava plenos poderes por dois anos sobre diversas áreas sob o pretexto de conter a grave crise econômica. O texto previa ainda uma reforma eleitoral para instituir o voto distrital para a Câmara dos Deputados, modelo que historicamente elimina nuances entre polos de esquerda e direita.
É o mesmo cenário que limitou as pretensões autoritárias de Jair Bolsonaro no Brasil e de Donald Trump nos Estados Unidos. As ações do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foram fundamentais para conter as ameaças do bolsonarismo às instituições enquanto esse movimento ocupou a Presidência da República. O espectro autoritário ainda persiste, mas sua capacidade de ação efetiva encontra-se bastante constrangida. Ademais, os custos para ignorar tais constrangimentos seguem elevados, inclusive porque um golpe num país com o peso internacional do Brasil depende não apenas de mobilização popular, mas também de aliados externos.
Já os EUA não dispõem de freios internacionais — ironicamente por ocuparem o posto de hegemonia, ainda que em relativo declínio — do sistema de Estados-soberanos. Domesticamente, vê-se que a falta de um órgão comparável ao TSE abre a possibilidade de Trump ser candidato mesmo após a tentativa de golpe de 6 de janeiro de 2021, com a invasão do Capitólio.
Nesta semana, está previsto o julgamento da Suprema Corte dos EUA que vai decidir pela constitucionalidade da exclusão do muito provável candidato do Partido Republicano das cédulas de votação do Colorado sob o argumento de que isso violaria a 14ª emenda à Constituição de 1787. Esse artigo veda o acesso a cargos públicos por cidadãos que cometeram atos de insurreição contra o governo americano. Trump contesta, argumentando-se imune por ter sido presidente.
Tal como Argentina e Brasil, os EUA adotam um sistema federal, que aparentemente contribui para conter ameaças autoritárias, muito embora também possam encorajá-las, tal como demonstrado no desafio do Texas à autoridade presidencial de Joe Biden na defesa da fronteira com o México, com tropas estaduais colocando arame farpado no limite com o vizinho do sul sob o argumento de que o governo federal falha na defesa nacional ao permitir que tantos migrantes ilegais no país.
A saída, portanto, para evitar a ameaça autoritária posta pelo populismo de direita parece residir numa descentralização administrativa combinada com um centralismo eleitoral. Estado unitário, El Salvador tem o segundo, mas não o primeiro. Já os EUA têm apenas uma ampla concentração de poderes em níveis local e estadual, com, por exemplo, leis penais distintas em cada unidade da federação, sem uniformidade nas regras eleitorais.
Bukele, portanto, seguirá fazendo apenas cócegas nos instintos primitivos da direita autocratizante no Brasil enquanto a independência dos poderes persistir e o controle do processo eleitoral residir nas mãos do STF. Mudar esse status implica em altos riscos, tal como a aventura golpista do 8 de janeiro provou. Mais fácil alterar as prerrogativas do TSE — por isso, Bolsonaro insiste em dizer, tal como fez em recente live direcionada à ultradireita portuguesa, que as eleições de 2022 foram fraudadas. Mesmo sob condições adversas, o golpismo a la Bukele segue em alta por aqui.