Nesta quarta – e última – entrevista da série “Como os Tribunais morrem”, voltamos a um período anterior ao da ascensão populista de direita da última década. Com a ajuda do professor venezuelano Raul Sanchez-Urribarri, mergulhamos na história de como Hugo Chávez chegou ao poder e desmantelou a independência judicial na Venezuela.
Os métodos aplicados por Viktor Orbán na Hungria e por Kaczyński na Polônia surgem na Venezuela mais de uma década antes de ser visto nos países europeus. Em sua tentativa de implementar uma revolução, Chávez reformou o Judiciário, perseguiu seus membros e aparelhou a Suprema Corte, fazendo com que a separação de Poderes se tornasse apenas uma expressão vazia em seu país.
Professor, o senhor estudou extensivamente o cenário político da Venezuela. Pode elaborar como a ascensão ao poder de Chávez impactou a independência do judiciário?
A ascensão de Hugo Chávez ao poder marcou uma mudança significativa na paisagem política da Venezuela. Apesar de não ter conseguido maioria parlamentar, Chávez, um populista por natureza, embarcou em uma missão para transformar o sistema político. Seu carisma e autoidentificação com o povo levaram a uma pressão por uma nova Constituição. No entanto, a Constituição existente, particularmente a Constituição Democrática de 1961, apresentava desafios, já que não previa uma assembleia constituinte, um elemento-chave no plano de Chávez.
A falta de controle de Chávez no Congresso e o alinhamento do tribunal com o regime político anterior complicaram as coisas. O Tribunal, ligado ao antigo regime, mas nominalmente independente, era um obstáculo significativo. Chávez respondeu implicitamente ameaçando a Corte, enfatizando seu mandato para mudanças transformadoras. Essa confrontação com o Judiciário tornou-se uma característica de sua administração.
Em resposta a esses desafios, Chávez procurou reescrever a Constituição. Ele defendeu uma Assembleia Constituinte, um conceito ausente na Constituição de 1961. Essa medida foi controversa, pois os partidos políticos no Congresso, principalmente Ação Democrática e o Partido Democrata Cristão, eram contra. O Tribunal também resistiu, dado sua aderência à estrutura constitucional existente.
Ao ganhar poder, a administração de Chávez promoveu um referendo para autorizar uma Assembleia Constituinte. Apesar de irregularidades processuais, o referendo contou com o apoio do Supremo Tribunal e foi eventualmente organizado e aprovado, refletindo a popularidade de Chávez.
A Assembleia resultante, predominantemente pró-chavismo, iniciou reformas radicais que foram além de reformar o texto constitucional e certamente acima dos limites inicialmente impostos pelo Supremo Tribunal. Isso incluiu o fechamento do Congresso e o ataque ao Judiciário, levando a uma declaração de emergência judicial. O Tribunal, tentando moderar confrontos e se alinhar com o regime, optou por não desafiar esses desenvolvimentos – uma medida que levou a presidente Cecilia Sosa a declarar que o Tribunal havia cometido suicídio para evitar ser assassinado.
E quanto ao papel da oposição durante esse período, o que fizeram?
A oposição, infelizmente, cometeu erros estratégicos nesse período. As regras eleitorais foram inclinadas a favor de Chávez, resultando em uma Assembleia onde a oposição estava significativamente sub-representada. Essa má representação, combinada com os próprios erros de cálculo da oposição, significou que o projeto constitucional não foi efetivamente contestado, e os avanços autoritários do governo não foram resistidos.
As reformas subsequentes afetaram profundamente o Judiciário. O Tribunal Supremo de Justiça, estabelecido sob a nova Constituição, estava inicialmente sob o controle do chavismo. No entanto, não era meramente submisso. Procurou consolidar seu próprio poder, interpretando sua jurisdição de forma expansiva. Essa abordagem levou a confrontos ocasionais com atores governamentais de nível inferior e um papel como garantidor de certos direitos sob a nova Constituição. O Tribunal foi politizado, aberto a influências externas, mas é uma história complicada.
Houve oposição dentro do Tribunal às ações de Chávez?
Interessantemente, sim. O Tribunal não era uma entidade monolítica. Ele exibiu divisões internas, particularmente evidentes quando se opôs a Chávez em certos casos, como no julgamento dos militares envolvidos em uma tentativa de golpe. Essa heterogeneidade dentro do chavismo refletiu-se na composição do Tribunal, que incluía várias facções e indivíduos com diferentes níveis de lealdade a Chávez.
O Tribunal, especialmente a Câmara Constitucional, era uma mistura de indivíduos com diferentes origens. Eles foram nomeados com posições interinas para garantir alinhamento com o regime, mas depois, a composição incluiu juízes com conexões a alguns atores da oposição. Essa diversidade dentro do Tribunal levou a uma divisão pós-2002, refletindo a polarização crescente no país.
Embora o Tribunal tenha apoiado em grande parte o regime chavista, também buscou seus próprios interesses institucionais. Esse duplo papel é crucial para entender a trajetória da instituição durante o mandato de Chávez, especialmente nos primeiros anos. Não se tratava apenas de apoiar o chavismo; era também sobre afirmar a autoridade do Tribunal na nova ordem política.
As reformas levaram a uma reestruturação significativa do Judiciário. Essa reestruturação, parte de uma revisão institucional mais ampla, solidificou o poder de Chávez e marcou um ponto de virada em sua administração, consolidando seu papel como líder revolucionário. Essas mudanças, discutidas em minha dissertação e em vários artigos, refletem uma interação complexa de dinâmicas políticas e judiciais durante este período crucial na história da Venezuela.
Como as reformas de Chávez se conectam à tentativa de golpe?
A tentativa de golpe em 2001-2002, de fato, originou-se das reformas radicais de Chávez. Embora não justifique o golpe, é essencial entender o contexto político. Para alguns, essa radicalização parecia ser a estratégia de Chávez, mas é mais provável uma interação complexa de vários fatores. A decisão da oposição de escalar para protestos de rua e considerar um golpe não foi unânime; foi produto de uma situação política não linear e evolutiva. Como autores como Laura Gamboa, Maryhen Rodriguez Jimenez, Javier Corrales e outros apontaram, articular estratégias de oposição contra um presidente popular e seu movimento disposto a dobrar as regras da democracia é extremamente difícil.
Os braços operacionais das forças armadas estiveram envolvidos, mas é crucial notar que o exército não era monolítico em seu apoio a favor ou contra Chávez. Simultaneamente, o Judiciário passou por um processo de emergência judicial, substituindo juízes e avaliando suas lealdades, o que estava relacionado ao golpe e seu desdobramento.
O que aconteceu depois que o golpe falhou?
Durante o golpe, o Tribunal, como outras instituições, foi temporariamente desmantelado. Essa experiência de perseguição para aqueles identificados como pró-regime foi profunda e deixou um impacto duradouro, comprometendo a política interna da instituição. No entanto, após o golpe, o Supremo Tribunal acabou desempenhando um papel crucial no conflito político, decidindo uma série de casos políticos importantes. Por exemplo, participantes-chave no golpe foram absolvidos pela Câmara Plenária do Tribunal, enfurecendo Chávez e seus apoiadores. No entanto, a Câmara Constitucional permaneceu aliada ao regime, uma relação que também era muito complexa.
O golpe e seus desdobramentos foram fundamentais para moldar a Venezuela polarizada de hoje. Para a oposição, isso solidificou a crença de que Chávez não poderia ser removido democraticamente. Para os chavistas, instilou um medo de perder o poder e as consequências que poderiam seguir. Esses eventos levaram a uma divisão emocional e política profunda dentro do país, afetando particularmente o Supremo Tribunal. O Tribunal, que inicialmente tinha decisões unânimes em sua Câmara Constitucional, tornou-se fortemente dividido nos meses seguintes ao golpe.
Como o Tribunal funcionava neste estado dividido?
O Tribunal foi reformulado por meio de nova legislação inconstitucionalmente aprovada pela legislatura controlada pelos chavistas em 2004, pouco antes de um referendo de recall contra Chávez, que ele venceu facilmente. Após 2004-2005, o Supremo Tribunal basicamente abandonou qualquer aparência de oposição ao governo. Isso não se limitou a casos politicamente relevantes; permeou todos os níveis de tomada de decisão. O Tribunal passou de um papel de controle para um de colaboração, efetivamente servindo ao mandato transformador da revolução. Essa mudança é evidente nos dados: nenhuma decisão contra o governo foi registrada de milhares de casos. O Tribunal se tornou uma ferramenta confiável para a proteção do regime.
Portanto, sob o governo do chavismo, o Supremo Tribunal passou de um órgão judicial um tanto independente para um Tribunal politizado e, eventualmente, para se tornar um instrumento político confiável em nome do regime. Essa evolução não foi apenas uma questão de submissão, mas um papel ativo na formação e proteção dos interesses do chavismo. É uma história complexa que entrelaça elementos legais, políticos e emocionais, moldando o tribunal na instituição que vemos hoje, profundamente integrada ao regime autoritário.
Assim como os casos anteriores desta série – Israel, Hungria e Polônia –, é possível notar que propostas que buscam reestruturar a composição ou as atribuições de tribunais, em especial de Tribunais Constitucionais e Supremas Cortes, devem ser vistas com ceticismo.
Após estudar o caso desses países, eu e Carlos Marden (professor do PPGD da Unichristus) desenvolvemos um conceito para esse tipo de manobra, chamamos de “domesticação de cortes”. Ela acontece de três formas: i) pelo tradicional empacotamento do tribunal (court packing), com a expansão do número de seus membros; ii) pela redução do número de seus integrantes, seja por meio de um impeachment fraudulento, seja pela redução da idade de aposentadoria; e iii) por meio de reformas nas atribuições, competências e orçamento do tribunal.[1]
O que fica, além do alerta constante contra os inimigos da liberdade, é ter sempre em mente a lição do historiador Timothy Snyder: “[s]ão as instituições que nos ajudam a preservar a decência”, então, “[n]ão fale de ‘nossas instituições’ a menos que você as torne suas agindo em seu nome. As instituições não se protegem. Elas caem uma após a outra, a menos que cada uma seja defendida desde o início”.[2]
[1] SOBREIRA, David; COUTINHO, Carlos Marden Cabral. Domesticando a Justiça. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 10, n. 2, e242, maio/ago. 2023. Disponível em: revistas.ufpr.br/rinc/article/view/e242/51343.
[2] SNYDER, Thimothy. Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente. Tradução de Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Edição Kindle. p. 12.