Em 21 de setembro de 2023, foi publicada a Lei 14.689/2023, que restabeleceu o voto de qualidade (exarado pelo presidente do colegiado julgador, que é sempre um representante do fisco) como método de desempate nos julgamentos do Carf. Ocorre que o restabelecimento dessa sistemática possui uma série de inconstitucionalidades.
Em primeiro lugar, as declarações feitas pelo atual governo para justificar o restabelecimento do voto de qualidade denota que tal mecanismo foi implementado com desvio de finalidade (o que tornaria nula tal restabelecimento, por força da alínea “e” do artigo 2º da Lei 4.717/1965), havendo inobservância, em última análise, até mesmo do princípio da impessoalidade dos atos da administração pública, previsto no artigo 37 da Constituição.
Para atingir tal constatação, é importante relembrar a declaração dita pelo atual ministro da Fazenda, no dia 30 de agosto de 2023, ao afirmar que o voto de qualidade teria por função garantir a base fiscal do Estado brasileiro dando ao Carf uma visão de ser um órgão para arrecadar tributos, o que foi “confirmado” pelo presidente do Conselho, ao dizer que a aludida meta de arrecadação seria obtida “com tranquilidade”.
No entanto, o que se ignora nessas declarações é que o Carf não foi criado para ser um órgão de arrecadação, mas para exercer o controle de legalidade das autuações lavradas em âmbito federal, de modo a evitar que cheguem ao judiciário cobranças absolutamente ilegais. Não à toa, Ives Gandra da Silva Martins criticou a distorcida visão do Carf apresentada pelo governo atual, pontuando que houve a transformação do Carf em um órgão arrecadador do fisco, alertando que, com a atual visão que se teria do Conselho, o que menos importa é a justiça tributária, pois o que mais importa é ter dinheiro em caixa.
Assim considerando, torna-se nítido que, ao se restabelecer o voto de qualidade como mecanismo de arrecadação, quando, na realidade, deveria ser um método de resolução de conflitos, houve um absoluto desvio de finalidade dessa medida (o que a torna nula por força da alínea “e” do artigo 2º da Lei 4.717/1965), levando, em última análise, à inobservância ao princípio da impessoalidade dos atos da administração pública, previsto no artigo 37 da Constituição.
Em segundo lugar, o restabelecimento do voto de qualidade, da forma como feita, pode violar o princípio da isonomia, eventualmente causando uma concorrência desleal entre contribuintes em situação semelhante.
Isso porque há a possibilidade de que dois contribuintes que litigaram, perante o Carf, débitos em situação jurídica similar, venham a obter decisões distintas, caso, por exemplo, um deles tiver o seu caso julgado na vigência do artigo 19-E da Lei 10.522/2002 (quando o voto de desempate era pró contribuintes) e, o outro, tiver seu caso julgado no presente momento (quando o voto de qualidade é pró-fisco).
Nesse exemplo, para uma situação jurídica análoga, ter-se-iam decisões conflitantes (uma a favor do contribuinte e, outra, contrária), apenas em razão da forma de aplicação do voto de qualidade, o que viola o princípio da isonomia, insculpido no artigo 5º e no inciso II do artigo 150 da Constituição.
Continuamente, se esses contribuintes forem concorrentes comerciais (atuarem no mesmo segmento econômico), o voto de qualidade poderá acarretar uma concorrência desleal ao contribuinte que foi beneficiado pela sistemática de votação anterior, em violação ao inciso IV do artigo 170 da Constituição, visto que essa diferenciação poderia impactar os preços de seus produtos e/ou serviços, impedindo a livre concorrência.
Em terceiro lugar, o voto de qualidade também impacta o direito de petição (alínea “a” do inciso XXXIV do artigo 5º da CF), o direito de acesso à Justiça (inciso XXXV do artigo 5º da CF) e o direito de amplo exercício de defesa (inciso LV do artigo 5º da CF).
Isso, porque, apesar de a Lei 14.689/2023 ter “dispensad[o] a apresentação de garantia para a discussão judicial dos créditos resolvidos favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade”, essa dispensa é condicionada apenas “[a]os contribuintes com capacidade de pagamento”, trazendo um rol de requisitos para tanto.
Todavia, nem todos os contribuintes possuem uma situação financeira abastada, a permitir o enquadramento nessa hipótese de dispensa de garantia (o que afeta, sobretudo, pequenos contribuintes, como pessoas físicas, microempresas e empresas de pequeno porte). Nesses casos, a despeito da manutenção da cobrança, na via administrativa, em uma situação de elevada dúvida (visto o empate de votos), esses contribuintes poderiam ver a discussão judicial ser inviabilizada em razão de seu custo.
Por isso, ante a impossibilidade de prosseguir discutindo uma cobrança que o contribuinte entende ser indevida, viola-se seu direito de petição, de acesso à justiça e de ampla defesa (já que não poderá se socorrer do Poder Judiciário para requerer o cancelamento do débito, nem se defender contra a futura execução).
Assim, conclui-se que o restabelecimento do voto de qualidade possui múltiplas inconstitucionalidades, o que demonstra a necessidade da revisão da medida.