Nos dois primeiros artigos desta série, tratamos, respectivamente, sobre a materialidade do imposto seletivo (IS), tributo sobre o consumo de bens e serviços específicos, causadores de malefícios à saúde ou ao meio ambiente, e sobre seu caráter extrafiscal. Essa natureza do seletivo, cujo pressuposto é a indução de comportamentos, demandará que a União promova análises ex ante e ex post da necessidade, adequação e eficácia do uso da tributação como instrumento de política pública, em linha com as melhores práticas de governança.
São temas interligados e conectados ao objeto do presente artigo: para que o IS alcance sua finalidade de influenciar o comportamento dos consumidores, a fim de evitar ou reduzir o consumo de bens e serviços considerados prejudiciais, os aspectos quantitativos da hipótese de incidência devem ser cautelosamente desenhados, com base em avaliação ex ante, e periodicamente revisados, utilizando-se as técnicas de avaliação ex post.
Novamente, conforme pontuado nos artigos anteriores, as considerações ora apresentadas dizem respeito ao IS em sua formatação clássica, delineada nos incisos I a VI do §6º do art. 153 da CF, com função indutora dos hábitos de consumo. O IS previsto no inciso VII do mesmo parágrafo, incidente nas extrações, será abordado no último artigo desta série, em razão de suas particularidades.
Mas como, afinal, o IS clássico poderá ser cobrado pela União? Para contribuir com esse debate, trataremos das duas possíveis modalidades de alíquotas previstas no texto constitucional para esse tributo: ad rem ou ad valorem.
Na Nota Técnica “Reforma do Modelo Brasileiro de Tributação de Bens e Serviços”, de julho de 2019, o Centro de Cidadania Fiscal (CCIF) apresentou suas principais sugestões de diretrizes para a reforma tributária e, em relação ao imposto seletivo federal, registrou que suas alíquotas “podem ser ad rem (por unidade de produto) ou ad valorem (proporcionais ao valor do bem/serviço tributado)”.
Esse delineamento do aspecto quantitativo do IS, contudo, não constou do texto original da PEC 45/19, e foi inserido originalmente por meio do substitutivo do senador Eduardo Braga (MDB-AM), de 25 de outubro de 2023.
Com as alterações introduzidas pela EC 132/23, o art. 153, §6º, VI da CF prevê que o IS “terá suas alíquotas fixadas em lei ordinária, podendo ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem”.
O texto constitucional está alinhado à literatura internacional mais abalizada, que recomenda a cobrança do IS com base em alíquotas ad rem, ad valorem, ou mediante uma combinação de ambas, a depender dos objetivos da política pública em que a tributação se insere. Conforme Sijbren Cnossen, “em mercados imperfeitos, a escolha entre esses dois tipos de alíquotas depende de alguns fatores: a política tributária está sendo adotada para desestimular o consumo ou para aumentar a arrecadação? A melhora da qualidade dos produtos é um efeito desejado ou não?” (Theory and Practice of Excise Taxation, 2005, p. 6-7).
Isso porque as alíquotas ad valorem correspondem a uma forma de tributação em que o valor do tributo varia de acordo com o valor da operação, sendo sobre este último aplicado um determinado percentual. Assim, a cobrança do IS nesse formato tende a aumentar as diferenças de preço entre marcas caras e baratas de um mesmo tipo de produto.
Já as alíquotas específicas, também conhecidas como ad rem, são fixadas em termos de uma quantia específica por unidade de medida, como um valor em dinheiro por quilo, litro ou metro cúbico. Não são novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Hoje, alíquotas ad rem são utilizadas na apuração de tributos sobre o consumo para determinados produtos, como é o caso do regime especial de PIS/Cofins aplicável ao etanol.
Nas palavras de Michael Keen, “não existe um equilíbrio ideal entre os dois tipos de alíquotas”, de modo que “a definição do equilíbrio entre os componentes ad rem e ad valorem dos impostos especiais de consumo depende do tipo de produto, da estrutura do mercado e do objetivo político” (The Balance between Specific and Ad Valorem Taxation, Fiscal Studies, Vol. 19/1, pp. 1-37, Apud OCDE, Consumption Tax Trends, 2022).
Ademais, não custa lembrar que, como apontado nos artigos anteriores desta série, o IS brasileiro foi delineado com um imposto indutor de comportamentos, de modo que não poderá ser cobrado pela União exclusivamente para arrecadar receitas, tampouco observando os preceitos clássicos de um “tributo Pigouviano”, associado à ideia de “indenização” da coletividade pelos custos externos decorrentes do ato individual de consumo de um bem ou serviço prejudicial.
Pelo contrário, sua cobrança deverá ocorrer na exata medida do necessário para influenciar as práticas de consumo dos indivíduos, induzindo-os a reduzir ou deixar de consumir bens e serviços nocivos, conforme os objetivos da política pública respectiva.
Combustíveis, cigarros e bebidas alcoólicas, acima mencionados, são produtos usualmente sujeitos à incidência do IS na experiência internacional, pois considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, conforme demonstra levantamento realizado pela OCDE (Consumption Tax Trends 2022). Conforme esse mesmo estudo, o aspecto quantitativo da hipótese de incidência do IS varia muito entre os países, sendo o imposto “geralmente calculado com base no peso, volume, concentração ou quantidade do produto, por vezes combinados com o valor da operação, e, em alguns casos, exclusivamente de forma ad valorem”.
Algumas recomendações da OCDE, feitas no referido estudo, são valiosas para a futura utilização do IS como instrumento de políticas públicas no Brasil: quando utilizadas alíquotas ad rem, a política deve ser desenhada levando em consideração as particularidades do produto sujeito à tributação especial.
Nesse sentido, Sijbren Cnossen, no mesmo trabalho citado acima, avalia o caso concreto dos cigarros e outros produtos do fumo, que podem ter alíquota ad rem fixada com base na quantidade (peso) de tabaco, no número de cigarros por embalagem comercializada ou quantidade de nicotina por unidade, por exemplo.
O referido autor trata também sobre as bebidas alcoólicas, cuja tributação na modalidade específica pode ser baseada no volume, no teor alcoólico, ou numa combinação desses dois atributos. Sobre o tema, vale mencionar o recém-publicado manual da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre políticas públicas envolvendo bebidas alcoólicas, que aponta a tributação especial baseada no teor alcoólico como a melhor estratégia para reduzir o consumo de álcool de forma prejudicial à saúde. Conforme a OMS, “a vantagem da alíquota específica nesses moldes é que a tributação visa diretamente o produto químico indutor de danos – o etanol – reduzindo assim o consumo total de etanol, bem como o consumo de bebidas alcoólicas de alto teor” (WHO technical manual on alcohol tax policy and administration, 2023).
Já em relação às alíquotas ad valorem, a OCDE destaca seus potenciais efeitos sobre o mercado e os hábitos de consumo da população, a serem considerados pelas administrações tributárias na cobrança do IS. Usando como exemplo as bebidas alcoólicas, a entidade cita que a cobrança do IS exclusivamente pela modalidade ad valorem pode gerar um desincentivo a melhorias de qualidade nos produtos e ao desenvolvimento de produtos com menor teor alcoólico, pois os investimentos realizados pelas indústrias tendem a aumentar o preço final e, consequentemente, a base tributável. Ademais, por impactar diretamente o preço praticado ao consumidor final, essa forma de tributação pode gerar o efeito indesejado de potencializar o consumir bebidas mais baratas, de menor qualidade.
Ainda de acordo com a OCDE, em alguns casos, como costuma acontecer com os cigarros, pode ser recomendável cobrar o IS mediante uma combinação de alíquotas ad rem e ad valorem, para assegurar que a tributação especial também influencie o comportamento dos consumidores das maiores faixas de renda, menos sensíveis aos aumentos de preço.
Importante também considerar que a cobrança ad rem tende a ser mais simples, facilitando a fiscalização, pois requer somente a determinação da quantidade física do produto ou de um determinado componente para a identificação do valor de IS a ser recolhido em cada operação.
Por fim, destacamos outro aspecto relevante a ser considerado no desenho de políticas públicas que incluam a cobrança do IS: em alguns casos, pode ser recomendável definir o valor cobrado também em função do uso do produto, além do tipo e do valor, acima mencionados. É o que acontece, na experiência internacional, em relação aos combustíveis, que, na Europa, costumam ser menos tributados quando destinados ao aquecimento de residências, e mais tributados quando utilizados em motores, incluindo os automotivos.
Em conclusão, a implementação do IS no contexto brasileiro deve priorizar a eficácia da política pública desejada. A escolha entre alíquotas ad rem e ad valorem, ou uma combinação de ambas, deverá ser baseada na avaliação das características específicas de cada produto e do impacto desejado sobre o consumo. Essa flexibilidade no design do IS permite que o imposto seja um instrumento dinâmico na indução de comportamentos mais saudáveis e ambientalmente sustentáveis. Adicionalmente, a constante revisão e ajuste das alíquotas e métodos de quantificação do IS são essenciais para assegurar que o imposto permaneça efetivo em um cenário econômico em constante evolução.