TEA: o desafio de compatibilizar o atendimento a pacientes e a viabilidade dos planos

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Musicoterapia, equoterapia, cromoterapia, terapias com ozônio e mais. A lista de tratamentos para pacientes que têm Transtorno do Espectro Autista (TEA) é ampla e cresceu ainda mais depois que, em julho de 2022, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tornou a cobertura de sessões obrigatória e ilimitada. Isso provocou um aumento da procura por tratamentos e, consequentemente,  a pressão sobre os planos privados de saúde.

O aumento do diagnóstico de autismo no Brasil e no mundo, o desenvolvimento das terapias de tratamento e a crise do sistema de saúde suplementar pós-pandemia deram ao tema um destaque inédito – com dados recentes e argumentos importantes dos dois lados para serem objetos de reflexão.

O que alega o setor

Não há diretrizes claras para a realização dos tratamentos para pessoas com TEA , o que, segundo especialistas do setor, pode gerar inseguranças para os pacientes, além de comprometer o orçamento dos convênios.

“Muitas dessas terapias não têm evidências científicas. Já atendemos mães reclamando que fizeram tratamentos equivocados e desnecessários e acabaram perdendo uma ótima janela terapêutica para suas crianças autistas”, afirma Cassio Ide Alves, superintendente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge).

Essa situação fez com que o atendimento de saúde suplementar para autistas tenha entrado numa lógica mais mercantilista, segundo Fernando Bianchi, sócio do escritório de advocacia M3BS, que atua nesse setor. “Hoje, de 15% a 20% do custo assistencial dos planos de saúde são de TEA. Há cidades em São Paulo que tinham três clínicas especializadas e, em um ano, passaram a ter 19”, conta.

De acordo com levantamento da Abramge até novembro de 2023, os valores desembolsados com terapias de Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD) representaram aproximadamente 9,13% do custo médico das operadoras saúde e já superam os gastos com tratamentos de câncer, que representaram 8,7% do custo médico. A pesquisa indica ainda que a taxa de crescimento das terapias oncológicas foi de 3,52% de 2021 a 2022 e de 32,66% de 2022 a 2023, o que representa em dois anos um crescimento de 37,33%. Já as terapias de TEA e TGD tiveram taxa de crescimento de 20,21% de 2021 a 2022 e de 45,07% de 2022 a 2023, o que representa em dois anos um crescimento de 74,38%.

A linha de cuidado preconizada para pacientes com autismo em todo o mundo é realizada em três esferas: clínica, familiar e escolar, com terapias complementares que tenham evidências clínicas sólidas. O objetivo é que o paciente melhore suas condições cognitivas e de habilidades sociais. “Liberar o acesso a todo tipo de terapias sem nenhum tipo de qualificação não vai fazer bem para os pacientes. E, diferente de uma cirurgia, por exemplo, que em poucos dias depois você vê se deu certo ou não, essa avaliação no TEA demora mais tempo”, alerta o superintendente da Abramge.

De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, houve um aumento de 240% no diagnóstico de TEA nos últimos 20 anos. No Brasil, não há números oficiais, mas estima-se que a prevalência seja semelhante, o que criou uma demanda maior por serviços ligados ao transtorno. Conforme as informações do mapa assistencial da ANS, em 2022 foram observados aumentos na quantidade de consultas e sessões de fonoaudiologia (aumento de 26%), terapia ocupacional (aumento de 42,5%) e atendimento psicológico (aumento de 25%), em relação a 2021.

“As terapias ilimitadas têm como principais consequências as brechas para a ocorrência de desperdícios e abusos e o aumento de custos provocado pelo crescimento do uso do sistema. Os diversos tipos de técnicas que são lançadas a todo momento, somadas à prescrição de elevada carga horária, têm causado esgotamento da rede de atendimento”, diz Vera Valente, diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde). Segundo ela, em 2022, as operadoras de planos de saúde acumularam um prejuízo operacional de R$ 10,7 bilhões, seguido por um prejuízo operacional de R$ 4,4 bilhões no primeiro semestre de 2023, considerando a assistência médico-hospitalar.

De acordo com os dados mais recentes da ANS, as operadoras registraram um lucro líquido de R$ 3,1 bilhões no acumulado dos três primeiros trimestres de 2023. Contudo, as operadoras médico-hospitalares mantiveram a tendência mencionada acima e tiveram um resultado operacional negativo de R$ 6,3 bilhões acumulado ao longo desse período. Ainda assim, esse prejuízo foi compensado por um resultado financeiro recorde de R$ 8,37 bilhões, advindo principalmente da remuneração das suas aplicações financeiras, que acumularam ao final do período quase R$ 107 bilhões.

Argumentos do lado dos pacientes

Enquanto os planos de saúde se desdobram para cumprir as novas regras da ANS, os familiares de pacientes autistas brigam, principalmente na Justiça, para fazer valer seus direitos. As reclamações contra planos de saúde mais do que dobraram nos últimos cinco anos, desde que a ANS criou o Índice Geral de Reclamação (IGR), que mede a satisfação dos usuários com os convênios, em 2018. Esse número, que era de 15,5 quando surgiu, chegou a 37 em 2022 e, subiu para 44,8 até novembro do ano passado. Em 2022, a ANS registrou 189.000 queixas contra planos de saúde. De janeiro a dezembro de 2023, foram registradas 291.913 reclamações.

Em abril, o gabinete da deputada estadual Andréa Werner (PSB), presidente da comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), passou a receber queixas de cancelamentos unilaterais de pessoas em tratamento de autismo, câncer e outras doenças graves. Em resposta, ela apresentou, em maio, uma proposta de alteração na Lei dos Planos de Saúde para que seja vedada essa rescisão unilateral e a garantia de que clínicas, hospitais e outros espaços de atendimento médico só possam ser descredenciados se substituídos por outro equivalente.

“Os planos de saúde têm descredenciado clínicas de excelência que atendem crianças e adolescentes com deficiência, por exemplo, e priorizam atendimento em clínicas próprias, menores e de difícil acesso à maior parte da população que precisa desse atendimento”, afirma a deputada. A situação também é relatada por associações de pacientes e familiares de pacientes, como o Instituto Resiliência Azul, voltado para crianças com deficiências ocultas, como o autismo. “Nosso advogado reuniu casos de 100 famílias para apresentar uma denúncia ao Ministério Público”, conta Diva Batista, presidente da organização e mãe de um garoto autista de 11 anos.

As fontes do setor ouvidas pelo JOTA afirmam que não têm negado atendimento a pacientes autistas. Em resposta aos questionamentos feitos pela reportagem, a ANS informou, em nota que “não é possível afirmar, com segurança, quais os motivos” para o aumento das queixas e denúncias contra convênios de saúde, mas lista algumas possibilidades, como “os reflexos pós-pandemia”, o aumento do número de beneficiários e o maior entendimento dos consumidores sobre seus direitos.

Outra questão é a falta de profissionais qualificados para atender pacientes autistas. “Mesmo nos Estados Unidos, onde o tratamento de TEA começou há 30 anos, não há o número suficiente de trabalhadores para atuar na área. Por isso, o tratamento deve ser hierarquizado, para que não haja um apagão profissional”, afirma Cassio Ide Alves.

Como a demanda é maior que a oferta e os convênios têm de garantir o atendimento, eles pagam o valor que cada profissional cobra. “É preciso avançar na precificação das sessões”, defende Marina Shizuko Andrade Yasuda, diretora técnica da Unidas.

“Não existe receita de bolo para esses pacientes, cada caso é um caso, mas ajudaria bastante ter um protocolo que norteasse as ações da saúde suplementar. Poderíamos pensar em clínicas compartilhadas para linha de cuidados em TEA, com profissionais especializados”, acrescenta. Ela conta que, em Belo Horizonte (MG), onde reside, há três clínicas especializadas em TEA e nenhuma delas tem a quantidade necessária de trabalhadores da área.

“Para pacientes autistas, há a necessidade de uma abordagem individualizada, monitorizada e que seja revista periodicamente. Mas cabe ao poder público atuar em conjunto com o setor privado para estabelecer diretrizes que permitam a oferta desse tratamento com qualidade”, conclui Cassio Ide Alves.