Além de genial, meu querido amigo Zé Vicente é um polemista. Já defendeu o “consequenciachismo” criticado pelo Conrado Hübner. Já decretou o fim dos manuais, para a divertida reação do Marçal. E agora chegou a minha vez!
Na coluna em que escarnece do fascínio nacional pelo direito comparado, Zé direciona a sua verve contra Chevron, célebre decisão da Suprema Corte americana: “apenas OK”. “Se você tirar os paetês, Chevron é, no fundo, um suco ralo.” Má vontade, né?
Não é preciso ser nenhum americanófilo para reconhecer que se trata de uma das mais importantes decisões do direito administrativo mundial. Julgue você mesmo.
Fato 1: é a decisão mais citada pelos juízes federais americanos, superando inclusive as três decisões seguintes (Brown v. Board of Education; Roe v. Wade; e Marbury v. Madison) conjuntamente.
Fato 2: acaba de ser erigida pela parcela conservadora da população americana como o inimigo a ser abatido. Pois é, nem Chevron escapou da polarização política: é de esquerda!, decretaram.
Numa Suprema Corte de maioria conservadora, parece que a tese vai colar. Em audiências realizadas na semana passada, os magistrados indicados por Donald Trump deixaram transparecer a intenção de derrubar a jurisprudência de quase 40 anos.
Vale esclarecer o embate ideológico por detrás da decisão, que pode não ser tão claro para o leitor brasileiro.
Chevron basicamente determina que os juízes devem ser deferentes às interpretações razoáveis que as agências reguladoras realizarem de leis ambíguas. Ao fazê-lo, a um só tempo (i) reconhece que há muito espaço para o intérprete do Direito tomar decisões autônomas, não pré-determinadas pelo legislador (algo que, por si só, Zé, já é uma baita lição para nossos juízes e juristas); e (ii) aloca esse poder decisório para as agências, sob o fundamento de que elas teriam mais expertise técnica e legitimidade política do que os juízes.
Embora tenha nascido no contexto do governo republicano de Ronald Reagan – e tenha sido então fortemente acolhida pelos juristas e juízes conservadores –, Chevron está hoje associada, no discurso político americano, a mais intervenção do governo (agora democrata) e “menos liberdade”.
Isso explica porque a Corte, que derrubou no ano passado o precedente relativo ao direito ao aborto (Roe v. Wade), já andou atenuando Chevron. Em decisões recentes, criou para ela limitações procedimentais e reduziu o escopo de decisões às quais ela se aplica. Para angústia da parcela progressista da academia americana, o risco agora é de total superação da jurisprudência.
No caso atualmente em julgamento, o argumento central é o de que Chevron subverte o dever dos juízes de dizer o direito: caberia a eles, e não às agências, apontar a “melhor interpretação” das leis.
As consequências podem ser devastadoras: o enfraquecimento das agências reguladoras, o incentivo à judicialização de suas decisões e a transferência de um amplo leque de decisões regulatórias para juízes federais sem formação técnica correspondente.
Nada OK, Zé.