A MP 1202 e o dilema do custo do Estado brasileiro

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A dinâmica da economia global tem incitado países em diferentes níveis de desenvolvimento a reavaliarem suas políticas fiscais e o gasto público, como resposta aos desafios inflacionários. Dados do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês) indicam recorde de endividamento dos governos – a dívida pública global somou US$ 88,1 trilhões em 2023, com gastos bastante acima da arrecadação.

No Brasil, o aumento de despesas e da dívida bruta do governo tem levado a União buscar a recomposição de receitas através de iniciativas como a MP 1202/23, que reonera a folha de pagamentos de empresas em 17 segmentos do setor de serviços.

Esse movimento veio na esteira do novo arcabouço fiscal, ou Regime Fiscal Sustentável (LC 200/23), que estabeleceu um mecanismo de controle do endividamento público, substituindo o framework anterior, o teto de gastos.

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024 fixou meta de resultado primário[1] de 0% do PIB para este ano. Para ser cumprida, o orçamento atual depende da alta da arrecadação de 1,4% do PIB, o que tem gerado incertezas e acelerado as estratégias de aumento da receita tributária, em um ano em que a atividade econômica esperada já está bem modesta (+1,6% é o aumento do PIB projetado no boletim Focus).

O governo espera arrecadar R$ 166 bilhões com um grande pacote de medidas concentrado na atividade das pessoas jurídicas (simplificação com a reforma tributária, fim dos Juros sobre o Capital Próprio, tributação de offshores, regulamentação de apostas esportivas, tributação sobre incentivos fiscais dos estados, reoneração da folha de pagamentos, retorno do voto de qualidade do Carf).

É inequívoco que todos estamos em busca de um equilíbrio mais eficiente da relação receita x despesa, perseguindo a sustentabilidade do endividamento público, contudo deva-se observar que a carga tributária brasileira já está em patamares elevados (33,5% do PIB aproximadamente), sendo compatível com países desenvolvidos.

O equilíbrio fiscal deve ser sempre perseguido, mas não em detrimento da competitividade do ambiente de negócios do país, que já não é dos melhores. No caso da MP 1202, os reflexos para o crescimento da economia e o ambiente de negócios no país são majoritariamente desfavoráveis, com acirramento da insegurança jurídica e aumento do custo Brasil.

O custo Brasil consome anualmente das empresas cerca de R$ 1,7 trilhão, o que representa 22% do PIB, segundo diagnóstico do Movimento Brasil Competitivo, desenvolvido em parceria com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Na mandala dos 12 desafios que o setor produtivo enfrenta para operar no país, o segundo principal é honrar tributos e obrigações acessórias. O gasto médio das empresas chega a R$ 310 bilhões/ano, ficando atrás apenas do esforço financeiro de empregar capital humano (R$ 360 bilhões).

Esses desafios são os que mais pesam na atividade e encarecem a operação de empresas intensivas em mão de obra, no setor de serviços, justamente as afetadas pela MP 1202.

Dito isso, analisamos os impactos financeiros da MP, visando contribuir para o entendimento abrangente dos tomadores de decisão das empresas de serviços. A medida tem um ponto favorável e três desfavoráveis.

No sentido positivo, os artigos 1º a 3º trouxeram redução da alíquota de contribuição previdenciária patronal às pessoas jurídicas com empregados remunerados até um salário-mínimo. As contribuições ficarão reduzidas escalonadamente entre 2024 e 2027, beneficiando, a partir de abril deste ano, prestadoras de serviços[2] de transportes rodoviários de passageiros, edição e impressão de livros, jornais e revistas, desenvolvimento em tecnologia da informação (TI), além de consultoria em TI e gestão empresarial.

O estoque estimado de postos de trabalho formais com empregados que recebem até 1 SM em todas as atividades econômicas é de 6.551.605, ou 15% do total de vagas formais no país, segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Cerca de 48% dessas pessoas estão empregadas nos serviços (3.105.410), 21% no comércio (1.377.564). Ou seja, o setor terciário emprega 7 a cada 10 trabalhadores com remuneração até 1 SM, e será o mais favorecido pelo trecho da medida.

Por outro lado, a MP trouxe três pontos negativos:

limitação à compensação de créditos decorrentes de decisões judiciais concluídas (transitadas em julgado);
revogação gradual dos benefícios fiscais concedidos pelo Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse);
reoneração da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos das empresas.

Além de restringir os créditos tributários a serem compensados decorrentes de decisões já transitadas em julgado, os artigos 4º e 5º da MP estabelecem regras para os valores, as quais poderão ser alteradas a qualquer tempo por ato do Ministério da Fazenda.

Com isso, além do impacto negativo no fluxo de caixa das empresas que acumulam créditos para redução dos tributos recuperáveis, fica imposta insegurança sobre a evolução dos valores que serão passíveis de compensação no tempo.

Até 2022, 849.166 processos questionaram a cobrança de tributos no âmbito da União, de acordo com relatório de contencioso tributário do Conselho Nacional de Justiça[3].

Já o artigo 6º da MP, no inciso I, revogou o Perse, que através da Lei 14.418 reduzia a zero as alíquotas de PIS/Cofins, CSLL e IRPJ. A partir de abril de 2024 as prestadoras de serviço do turismo[4] e eventos, no regime do lucro real/presumido, passam a recolher normalmente CSLL, PIS e Cofins, e voltam a recolher IRPJ em 2025, referente ao exercício social de 2024.

A retomada dos impostos sobre o resultado positivo dessas organizações representa redução de pouco mais de um terço do lucro líquido, comparativamente ao lucro com a desoneração do Perse. Em termos absolutos, a cada R$ 1.000 de receita bruta, sem o Perse o lucro líquido será R$ 83,13 menor do que com o programa.

Em 2024, o resultado positivo se reduz em 9,3% com a volta de PIS/Cofins, progredindo para queda de 33% a partir de 2025, com a retomada do recolhimento do IRPJ e CSLL.

O inciso II do artigo 6º também reonera parcialmente a importações de diversos bens classificados na TIPI (tabela de incidência do imposto sobre produtos industrializados), estabelecidas no parágrafo 21 do artigo 8º da Lei 10.865, com majoração do imposto de importação.

O mesmo artigo 6º retoma as contribuições sociais sobre as despesas com pessoal, em detrimentos da contribuição previdenciária sobre a receita bruta (CPRB) com alíquotas reduzidas. Nesse caso, a mudança de base e percentuais de contribuição (de 4,5% sobre a receita bruta para 20% das despesas com pessoal) aumentam em 2,7 vezes o custo com empregados nessas empresas.

Nossas estimativas também apontam que o impacto da reoneração da folha em detrimento da contribuição sobre a receita bruta será mais expressivo do que a desoneração sobre os salários dos empregados com até 1 SM de remuneração na maioria das prestadoras de serviços. Ou seja, se algo pudesse ser aproveitado da MP seriam os benefícios trazidos nos artigos 1º a 3º, mas eles serão eliminados pelo incremento da contribuição patronal especificada no artigo 6º.

Assim, dado que o ajuste fiscal corrente está embasado no aumento de receitas tributárias, é premente a necessidade de as empresas revisarem ou adaptarem seus planejamentos e estratégias a partir de 2024. Para manter a margem de lucro, as organizações repassarão o aumento de custos da MP 1202 ao consumidor final, via preços, com potencial inflacionário. Além disso, com resultados menores sobra menos espaço para novos projetos, investimentos e contratações, gerando ainda menos valor para a economia.

A MP 1202 coloca um ponto crucial a ser debatido nas prioridades do governo e do setor produtivo brasileiro, que é o quanto de competitividade o país está disposto a abrir mão para ter um Estado caro e ineficiente. A teoria econômica tipifica o caso em que o crescimento do Estado expulsa o capital privado, denominado Crowding-out. Desse modo, a discussão da Medida Provisória nos colocou empiricamente no cerne dos livros de macroeconomia, cabendo à sociedade decidir: queremos que o Estado sirva à sociedade ou o contrário?

[1] O Resultado Primário do Governo Central é a diferença entre as receitas e despesas primárias no exercício, excluídos os juros nominais incidentes sobre a dívida líquida.

[2] Classificadas nas 12 classes de CNAES: 49.21-3 Transporte rodoviário coletivo de passageiros, com itinerário fixo, municipal e em região metropolitana; 49.23-0 Transporte rodoviário de táxi; 49.29-9 Transporte rodoviário coletivo de passageiros, outros transportes rodoviários; 58.12-3 Edição de jornais; 58.21-2 Edição integrada à impressão de livros; 58.23-9 Edição integrada à impressão de revistas; 62.01-5 Desenvolvimento de programas de computador sob encomenda; 62.02-3 Desenvolvimento e licenciamento de programas de computador customizáveis; 62.03-1 Desenvolvimento e licenciamento de programas de computador não customizáveis; 62.04-0 Consultoria em tecnologia da informação; 62.09-1 Suporte técnico, manutenção e outros serviços em tecnologia da Informação; 70.20-4 Atividades de consultoria em gestão empresarial

[3] Disponível em <relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf (cnj.jus.br)>, acesso em 05 de janeiro de 2024

[4] Classificadas nas 17 classes de CNAES: 4923-0 – Serviço de transporte de passageiros, locação de automóveis com motorista; 4929-9 – Transporte rodoviário coletivo de passageiro, organização de excursões; 5510-8 – Hotéis e apart-hotéis; 5590-6 – albergues, campings e pensões; 5620-1 – Serviços de alimentação para eventos; 5611-2 – Restaurantes, bares e similares; 7721-7 – Aluguel de equipamentos recreativos e esportivos; 7739-0 – Aluguel de palcos, coberturas e outras estruturas, exceto andaimes; 7990-2- Serviços de reservas e outros serviços de turismo não especificados anteriormente; 7911-2 – Agências de viagem; 7912-1 – Operadores turísticos; 9001-9 – Produção teatral, produção musical, produção de espetáculos de dança e similares; 9003-5 – Outras atividades artísticas; 9102-3 – Museus, exploração de lugares e atrações, parques nacionais e ecológicos; 9319-1 – Produção e promoção de eventos esportivos; 9321-2 – Parques de diversão e temáticos; 9329-8 – Discotecas, danceterias, salões de dança e similares