A cultura jurídica que continua faltando no Brasil

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Quando vi pela televisão a afronta golpista às instituições democráticas na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, tive duas reações. A primeira foi indagar a mim mesmo por que motivos até hoje, quase quatro décadas depois, o país não enquadrou os membros das Forças Armadas que a ela serviram realizando atividades sujas, caminhando em linha contrária à trilhada pelo Uruguai e Argentina? A segunda reação foi buscar na minha biblioteca um autor que respondeu brilhantemente essa questão. Trata-se do historiador José Murilo de Carvalho, que foi membro da Academia Brasileira de Letras e faleceu há cinco meses.

O pouco de democracia que conquistamos terá de servir como método de navegação para os novos tempos. O combate à violência, à corrupção e à degradação da representação política exige profundas reformas na lei, nas instituições e nas mentalidades”, dizia ele nos memoráveis livros em que apontou, analisou e criticou o que chamava de “pecados mortais da República”. Um desses pecados era a contínua predisposição dos militares brasileiros de intervir na vida política brasileira sob a justificativa de que constituem um “poder moderador”, o que resultou em golpes de Estado, traumas institucionais, desprezo por direitos fundamentais, tortura e assassinatos.

A tese deste autor é que, por resultar de um golpe militar que pôs fim ao Império, em 1889, a República brasileira já nasceu viciada. Desde então, essa origem disseminou entre os militares a ideia de que eles seriam os responsáveis pelas instituições e de que teriam, como corporação, herdado o direito de intervir na política no momento em que desejassem, para assegurar a ordem e preservar a segurança nacional. “Por isso o Brasil é esta confusão que conhecemos”, afirmava Zé Murilo. Além disso, havíamos herdado um liberalismo clássico atrasado, em relação ao liberalismo europeu, uma vez que na Europa os liberais já estavam sensíveis às questões sociais, preocupando-se com os efeitos desagregadores das desigualdades sociais e econômicas. No Brasil, o liberalismo atrasado apenas consolidou o poder dos que já tinham poder, excluindo os que já estavam excluídos, dizia ele.

A partir daí forjou-se entre nós uma República oligárquica, em que a participação política era extremamente limitada – participação essa que, entre outras consequências, não educava a população brasileira para as práticas democráticas. E, como o país não enquadrou as Forças Armadas, e o Supremo Tribunal Federal não teve a sensatez – e, igualmente, a coragem – de punir militares responsáveis por atrocidades cometidas no período ditatorial entre 1964 e 1985, até hoje o Exército, a Marinha e a Aeronáutica continuam acreditando que são herdeiros de um poder moderador. Ou seja, do que Zé Murilo, com sua argúcia e refinamento, chamava de sinônimo de “poder desestabilizador das instituições democráticas”.

É por esse motivo que, apesar de a Constituição prever uma série de mecanismos de controle que disciplinam e limitam o exercício do poder no país, seus dirigentes eleitos no período de vigência democrática carecem de força quando têm de enquadrar oficiais que ignoram a Constituição que juraram cumprir. Em vez de demonstrar autoridade, os governantes contentam-se com uma negociação destinada a evitar qualquer punição. Não compreendem, assim, que quanto mais agem nesse sentido, mais abrem caminho para instabilidades, mais enfraquecem o próprio poder e mais expõem a sociedade civil a decisões tomadas por gente despreparada, que tem uma visão meramente corporativa dos interesses coletivos.

Exemplo disso está na pretensão das Forças Armadas de terem autonomia absoluta para definirem o currículo das escolas militares. Não admitem que os órgãos e dirigentes “paisanos” da cúpula do Poder Executivo proponham um diálogo para que saiam de sua concha e arejem sua visão de mundo. Como dizia Celso Furtado ao descrever sua experiência quando era ministro de Estado, se por um lado é fundamental que as elites militares estudem os problemas do país, por outro é frustrante que elas, por sua visão de mundo estreita e por sua aversão ao diálogo com as grandes universidades públicas do país, não consigam superar seus estereótipos nem desenvolver um pensamento abrangente sobre a realidade nacional.

“Nas minhas exposições procurava ser simples. Sabia das suscetibilidades dos ouvintes militares, sempre prevenidos contra um civil que pretende subentender a ignorância deles. Nos longos debates que se sucediam, dificilmente havia comunicação efetiva de ideias. As perguntas eram extremamente simples, como se o perguntante desejasse apenas dirimir uma dúvida de detalhe. Não lhes ocorria formular uma questão de ordem geral, como se estas já tivessem sido esclarecidas de antemão, ou somente pudessem ser abordadas em círculos mais restritos, o que entre os militares significa transferi-las para escalões hierárquicos superiores”, dizia Furtado. À imaginação atribuíam um papel residual na apreensão da realidade, deixando assim de “compreender os processos sociais complexos”, concluía.

É isso que explica a preservação, nas escolas militares, tanto de uma visão de mundo anticomunista, apesar de a Guerra Fria ter sido arquivada pela história, quanto de uma narrativa mitificada e pretensamente heroica sobre o papel dos militares no que chamaram de “Revolução vitoriosa” – ou seja, o golpe de 31 de março de 1964, por meio do qual generais, almirantes e brigadeiros se investiram como um poder constituinte permanente.

É isso que também explica por que os oficiais de alta patente envolvidos no atentado de 8 de janeiro desprezaram acintosamente o STF durante os quatro anos do governo Bolsonaro, acusando seus ministros de não saberem interpretar literalmente o artigo 142 da Constituição. É isso que explica, ainda, a visão de mundo ultrapassada e radical dos sócios do Clube Militar, o que levou centenas de toscos oficiais aposentados a defender, sob a justificativa de “garantir a lei e a ordem”, iniciativas violentas para depor um governo constituído legalmente e com legitimidade com base no pleito de 2022. Por fim, isso explica por que a figura do poder moderador – que em termos jurídicos existiu somente na Constituição do Império outorgada em 1824 por d. Pedro I – perdura de modo inconsequente e irresponsável até hoje.

Se no 8 de janeiro de 2023 minha primeira reação foi lembrar das análises de José Murilo de Carvalho, mostrando como os militares brasileiros converteram a ideia de poder moderador em mero sinônimo de poder desestabilizador da democracia, neste 8 de janeiro de 2024 fiquei com a sensação de que a defesa de uma punição exemplar para os militares da ativa ou reformados que se envolveram no atentado contra as instituições não foi tão firme como deveria ser – inclusive da parte do próprio governo.

Quantos desses militares foram presos? Quantos processos criminais contra eles já foram abertos? Por que o ministro da Defesa continua contemporizando quando é indagado sobre essa questão, em vez de ser firme, claro e objetivo? Se as pretensões das Forças Armadas – ou de parte delas – há mais de um século suscitam impasses estruturais do regime democrático, por que o Brasil até hoje não desenvolveu, ao longo de sucessivas gerações, uma cultura de repreensão e sanção penal exemplares sobre as atrocidades cometidas por militares em períodos ditatoriais? Que preço as próximas gerações pagarão por isso?