Entre as principais inovações da reforma institucional empreendida pela Lei 14.026/2020 ao saneamento básico, há que se destacar a prerrogativa conferida à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) para edição normas de referência (NR) para regulação da prestação de serviços públicos desta natureza.
Desde então, a agência vem empreendendo esforços para padronização de normas regulatórias que visam construir cenário de maior segurança jurídica e estabilidade institucional, com fundamento e horizonte na universalização destes serviços, em ações que se tornaram mais proeminentes neste ano de 2023, com destaque para a publicação da Norma de Referência 3, que estabeleceu regras a serem observadas para a indenização de ativos para os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Ainda assim, a Agenda Regulatória definida pela ANA para os anos de 2022, 2023 e 2024, bem como as ações empreendidas pela Agência para coleta de contribuições da sociedade na elaboração de suas normas de referência, demonstram que em 2024 a atividade regulatória para o saneamento básico se intensifique ainda mais. Mesmo porque, entre 2022 e 2023 foram iniciados 11 procedimentos de consulta pública pela ANA, sendo 6 deles voltados à coleta de contribuições sobre normas de referência para o saneamento básico que potencialmente passarão a viger ao longo de 2024.
Além disso, importante ressaltar ainda que a agenda regulatória da ANA é organizada em nove eixos temáticos que conformam um rol de metas regulatórias, de modo que o saneamento básico se encontra no Eixo Temático 9. São essas metas, inclusive, que guiam a elaboração das normas de referência e oferecem as premissas gerais que balizam a atividade normativo-regulatória da Agência.
No ano de 2023, todas as minutas de normas de referência submetidas à consulta pública pela ANA vieram do Eixo Temático 9, indicando uma priorização da agência com relação ao saneamento básico. Ao todo, foram e/ou estão submetidas à consulta pública normas que tratam sobre seis temas integrantes deste eixo temático e que devem iniciar sua vigência ao longo de 2024, ano que deve representar um significativo amadurecimento na regulação do saneamento básico, contribuindo para maior segurança jurídica e estabilidade institucional para os investimentos a serem empreendidos neste setor, conforme destacado pelos itens a seguir:
1) Qualidade da prestação dos serviços
Ainda em 2022, a ANA submeteu a consulta pública Norma de Referência sobre indicadores, padrões de qualidade, de eficiência, de eficácia e demais componentes da avaliação de desempenho da prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, incluindo a manutenção e a operação dos sistemas. A proposta traz, entre outros elementos, diretrizes para definição das metas de desempenho, bem como diretrizes para sua avaliação.
Mais recentemente, a Agência divulgou minuta de Norma de Referência sobre as condições gerais a serem observadas na prestação, atendimento ao público e medição, faturamento e cobrança, dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário. A Norma de Referência que conforma o objeto da Consulta Pública 10/2023 tem por objetivo solucionar problema regulatório que consiste na incompletude ou falta de padronização das condições gerais de prestação do serviço, em razão da divergência de conceitos e definições entre os normativos das diferentes Entidades Reguladoras Infracionais (ERIs), pela falta de clareza de itens mínimos e pela baixa coordenação entre os níveis nacional e subnacional, buscando promover maior fortalecimento institucional das ERI e, ainda, padronizar os procedimentos da prestação dos serviços.
2) Universalização do saneamento básico
A ANA divulgou minuta de Norma de Referência que aborda os critérios a serem considerados por titulares e órgãos reguladores de âmbito infranacional nos serviços de saneamento básico na elaboração de atos normativos e na tomada de decisões para o atingimento das metas de universalização. O documento prevê diretrizes e critérios para atendimento das metas de universalização, fixação de metas progressivas para expansão, bem como sistema de monitoramento para cumprimento dessas metas. Também prescreve responsabilidades para o titular do serviço, órgão regulador, usuário e prestador de serviço.
A norma também prevê a revogação da Norma de Referência ANA 2, que trata da padronização dos aditivos aos Contratos de Programa e de Concessão de saneamento básico, com vistas à incorporação das metas de universalização.
3) Regulação tarifária
A ANA também divulgou minuta com sua proposta para Norma de Referência sobre os modelos de regulação tarifária dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário. O objetivo da norma é definir os modelos de regulação tarifária que promovam incentivos que possibilitem a universalização do acesso ao saneamento básico e a adequada prestação dos serviços, trazendo regras sobre reajuste tarifário, revisão tarifária, cálculo tarifário e base de remuneração do órgão regulador. Trata-se de documento normativo extremamente relevante à segurança jurídica para mobilização de investimentos a serem empreendidos no setor.
4) Alocação de riscos
Também foi divulgado, pela ANA, Norma de Referência sobre matriz de riscos dos contratos de prestação de serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário. A minuta prevê que o risco deveria ser alocado, sempre que possível, à parte que tenha melhores condições de: a) diminuir, a um custo mais baixo, a probabilidade de sua ocorrência, adotando ações preventivas; b) se antecipar à concretização do risco, para controlar os seus impactos; c) mitigar os impactos do risco, tornando suas consequências menos danosas; e/ou d) gerenciar suas consequências danosas, sem repassá-las a terceiros, caso o evento se materialize.
O documento também traz uma proposta de matriz de riscos a ser contemplada por futuros contratos de prestação de serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário observar (além dos regulamentos da ERI, quando houver). Todavia, seria facultado ao titular do serviço, durante a fase de planejamento da contratação, solicitar a aprovação da entidade reguladora infranacional para alterar, no edital em elaboração, a descrição ou alocação dos riscos propostas em seu regulamento ou na Norma de Referência.
Outro aspecto relevante é que caso a norma seja aprovada sem alterações significativas no texto submetido a consulta pública, os contratos não licitados em vigor também deverão observar a matriz de riscos proposta no documento.
5) Governança regulatória
A ANA também divulgou minuta de Norma de Referência que estabelece práticas de governança a serem observadas pelas Entidades Reguladoras Infranacionais que atuam no setor de saneamento. O documento estabelece regras sobre autonomia administrativa, orçamentária e financeira, tecnicidade e independência decisória, transparência e participação social, mecanismos de controle, integridade e gestão de riscos para as ERI’s, além de prever o conteúdo mínimo que o ato de delegação da regulação deve conter.
6) Atos normativos procedimentais
Ainda neste ano de 2023, a ANA publicou a Consulta Pública 11/2023, com o escopo de regulamentar a previsão do Marco Legal de Saneamento Básico que incumbe à ANA a disponibilização, em caráter voluntário e com sujeição à concordância entre as partes, ação mediadora ou arbitral nos conflitos que envolvam titulares, agências reguladoras ou prestadores de serviços públicos de saneamento básico (art. 4º-A, § 5º). Apensar de não se tratar, propriamente, de uma norma de referência, o documento é altamente relevante por disciplinar as balizas de atuação da Agência nos procedimentos de resolução de disputas que se desdobrarem nas operações e execuções contratuais de serviços de saneamento.
Diante deste contexto, estima-se que o ano de 2024 seja profícuo na evolução normativo-regulatória do setor de saneamento básico, com grande protagonismo das Normas de Referência da ANA. É bom lembrar, com a reforma institucional empreendida pela Lei 14.026/2020, foi referendado um pacto comum em torno da universalização destes serviços no Brasil até 2033, o que requer um esforço conjunto da sociedade, operadoras dos serviços, gestores públicos e entidades de regulação em torno deste objetivo.
Para tanto, a padronização de normas regulatórias em torno de maior eficiência na prestação destes serviços pode ser bem-vinda à geração de maior atratividade dos investimentos que são invariavelmente necessários à universalização. Seus impactos, todavia, sejam eles positivos ou negativos, somente poderão ser visualizados à medida em que estas normas de referência sejam incorporadas no cotidiano da prestação dos serviços, a partir de um esforço conjunto entre todos os atores envolvidos.