Atropelo do devido processo legislativo na MP 1202 impõe sua devolução

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Ao apagar das luzes de 2023, no último dia 28, o presidente da República editou a MP 1202 com o objetivo declarado de preservar a meta de déficit fiscal “zero” no orçamento/exercício de 2024.

A normativa traz três medidas centrais que pretendem promover a recomposição de receitas: (I) a reoneração parcial da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos; (II) a revogação escalonada dos benefícios fiscais concedidos por meio do Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos); e (III) a limitação à compensação de créditos decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado.

O expediente, com todas as vênias à causa fiscal, representa verdadeiro atropelo do devido processo legislativo, configura abuso no exercício de edição de medidas provisórias e traduz desvio de finalidade deste instrumento normativo.

O intuito desse ensaio é menos avaliar o mérito das medidas adotadas e mais o procedimento e as distorções por ele infligidas no âmbito do processo legislativo e democrático.

De saída, é de se ter em conta que a reoneração parcial da folha acaba de ser rechaçada pelo Congresso Nacional, que, por ampla maioria, derrubou o veto do presidente aposto à Lei 14.784/23.

A referida normativa foi promulgada pelo presidente do Congresso apenas um dia antes da edição da medida provisória.

Neste ponto, o que a MP 1202 opera é inversão do processo legislativo e democrático. Pode-se verificar, analógica e teleologicamente, que a prática traduz a mesma inconstitucionalidade que buscou-se hostilizar por meio do disposto no art. 62, § 10 da CRFB/88: que veda a reedição, na mesma sessão legislativa de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. 

Essa interpretação, a propósito, não é nossa, mas extraída da hermenêutica constitucional do próprio Supremo Tribunal Federal:

“A norma inscrita no art. 67 da Constituição – que consagra o postulado da irrepetibilidade dos projetos rejeitados na mesma sessão legislativa – não impede o presidente da República de submeter, à apreciação do Congresso Nacional, reunido em convocação extraordinária (CF, art. 57, § 6º, II), projeto de lei versando, total ou parcialmente, a mesma matéria que constituiu objeto de medida provisória rejeitada pelo Parlamento, em sessão legislativa realizada no ano anterior. O presidente da República, no entanto, sob pena de ofensa ao princípio da separação de poderes e de transgressão à integridade da ordem democrática, não pode valer-se de medida provisória para disciplinar matéria que já tenha sido objeto de projeto de lei anteriormente rejeitado na mesma sessão legislativa. (RTJ 166/890, rel. min. Octavio Gallotti). [ADI 2.010 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 30-9-1999, P, DJ de 12-4-2002]”.

Ora, se não é dado ao presidente da República editar medida provisória sobre matéria que tenha sido rejeitada expressa ou tacitamente pelo Congresso Nacional (na mesma sessão legislativa), menos ainda lhe é dado editá-la quando o Congresso tenha expressamente derrubado veto por ele aposto em sentido idêntico, não só na mesma sessão legislativa, mas no espaço de um dia.

De se registrar que, a teor do art. 57, caput da CRFB/88, a sessão legislativa ordinária em si encerra-se no dia 22 de dezembro de cada ano. Deste modo, quando tratamos de “mesma sessão legislativa” estamos tratando da coincidência temporal entre a promulgação, que aperfeiçoa a derrubada do veto (27/12), e a edição da nova MP (28/12) – ainda que no período de recesso parlamentar.

Para mais, tanto quanto na reoneração da folha pagamento, quanto na revogação parcial dos benefícios do Perse, não há qualquer urgência (art. 62, caput, da CRFB/99) que justifique a edição da medida provisória. É que a revogação de benefícios fiscais se submete, regra geral à anterioridade (nonagesimal ou de exercício, caso a caso).

É a própria normativa que “confessa” a não urgência, em seu art. 7º, quando estabelece a vigência prospectiva das medidas de revogação de benefícios fiscais para abril de 2024. O que tem de esperar até abril não é urgente.

Quanto à limitação das compensações de créditos decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado, também não está presente o requisito de urgência para regulação por medida provisória. Não se vislumbra, por óbvio, que as compensações tributárias que se busca limitar sejam imprevistas.

Pelo contrário, são oriundas de decisões transitadas em julgado. Imprevisibilidade, se há, ocorre na ineficiência em mapear os riscos fiscais na consecução das metas orçamentárias.

Neste ponto, a MP é ainda mais temerária, ao delegar a ato do Ministério da Fazenda (art. 4º) a modulação do exercício de um direito fundamental do contribuinte, que é a compensação tributária.

Por todas essas razões, com fulcro no art. 65, § 5º da CRFB/88, que condiciona a deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias ao juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais, entendemos que o presidente do Congresso Nacional, em exercício regular da prerrogativa de impugnar as proposições que lhe pareçam contrárias à Constituição (artigo 48, XI, do regimento interno do Senado Federal), deveria promover a devolução da MP 1202/2023 ao presidente da República, interrompendo a produção de seus efeitos.

Em que pese o expediente da devolução de medidas provisórias não estar explicitado em nosso texto constitucional, é certo que se conformou como costume constitucional ao longo do tempo; chancelado pelo próprio Supremo Tribunal Federal (ADI 6991). É o que ensina, neste mesmo JOTA, a professora Roberta Simões Nascimento[1]. Trata-se, para a professora, de legítima “medida cautelar legislativa”.

O procedimento, em que pese ser relativamente raro, já foi adotado por ocasião das MPs 33, 446, 669. 671 e 679, pelo menos. A MP 669/2015, a propósito, devolvida pelo então presidente do Senado, Renan Calheiros, à então presidente Dilma Rousseff tratava exata e precisamente de redução do benefício fiscal relativo à folha de pagamento.

À ocasião do precedente legislativo, o Congresso entendeu que houve abuso do instrumento que deveria ser excepcional evidenciada pela absoluta ausência de urgência.

Ora, se houve abuso lá, o que dizer de agora quando não só não há urgência como o instrumento opera desvio de finalidade e atropelo da deliberação legislativa do Congresso Nacional?

A devolução da MP é importante para preservar tanto as regras do jogo democrático quanto a autonomia do Poder Legislativo.

[1] Aqui NASCIMENTO, Roberta Simões. Sobre a constitucionalidade da ‘devolução’ de medidas provisórias: Natureza de ‘medida cautelar’ legislativa justifica o expediente. Jota, 29 de junho de 2020. E aqui: NASCIMENTO, Roberta Simões. O costume constitucional da devolução in limine de medidas provisórias: Devolução da MP 1.068/2021 mostra dupla necessidade de regulamentação. Jota, 15 de junho de 2021.