Novos paradigmas para aferir justa causa em hipóteses de infidelidade partidária

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Para que um preceito transponha o plano das ideias e alcance as montanhas da realidade, se carece, a priori, de instrumentalização. Assim, se “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição”, a garantia da soberania passa, de forma indissociável, pela necessidade de um sistema que garanta a materialização desta representação.

Para as Casas Legislativas, o constituinte brasileiro optou pelo sistema proporcional – como instrumento, e não um fim em si mesmo – vocacionado a promover a representação do povo. Como explicita Jairo Nicolau,

A fórmula proporcional tem duas preocupações fundamentais: assegurar que a diversidade de opiniões de uma sociedade esteja refletida no Legislativo e garantir uma correspondência entre os votos recebidos pelos partidos e sua representação. A principal virtude da representação proporcional, segundo seus defensores, estaria em sua capacidade de espelhar no Legislativo todas as preferências e opiniões relevantes existentes na sociedade” (2004, p. 37).

Assim, como componente necessário dessa fórmula − ao menos enquanto não se evolui no debate sobre a constitucionalidade ou conveniência das candidaturas avulsas − a filiação partidária se apresenta como condição inegociável de elegibilidade, nos termos do art. 14, §3º, V, da Constituição Federal.

Ocorre que, a despeito da promissora oferta do sistema no plano conceitual, a arenosa realidade tratou de distorcê-lo com uma intensa migração partidária, notadamente a partir da redemocratização do país em 1985. Como rememora o professor Augusto Aras

o descalabro da mudança de partido chegou ao cúmulo, nas eleições estaduais e federal de 2002, quando, entre a data da diplomação e antes mesmo da posse, em 1o de janeiro de 2003, dezenas de parlamentares migraram, impunemente, chocando a sociedade brasileira com a já famosa dança das cadeiras, cujo objetivo foi o aumento de tempo na propaganda eleitoral no certame de 2004, sem embargo da satisfação de interesses pessoais (2006, p. 205).

Diante deste quadro, em março de 2007, o Tribunal Superior Eleitoral, respondeu positivamente aos questionamentos formulados no bojo da Consulta nº 1.398, definindo que os mandatos obtidos nas eleições proporcionais (vereadores, deputados estaduais, deputados distritais e deputados federais) pertencem aos partidos políticos ou às coligações, e não aos candidatos eleitos.

Convalidando o entendimento firmado, a minirreforma eleitoral de 2015 cuidou de inserir o art. 22-A à Lei dos Partidos Políticos, asseverando que “perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, do partido pelo qual foi eleito”.

A regra, contudo, comporta exceções, denominadas de “justa causa”, assim entendidas as hipóteses nas quais o detentor do mandato eletivo pode filiar-se a outra agremiação sem a perda da titularidade do mandato. Assim, além daquelas elencadas nos incisos I a III do mencionado artigo, sobrevieram duas, de ordem constitucional, e incluídas no art. 17 da Carta Magna, contemplando o candidato eleito por partido que não alcançar a cláusula de desempenho necessária para garantir o acesso a recursos do fundo partidário, ao rádio e à televisão, e aqueles que recebessem a anuência de seus partidos.

Essas novas hipóteses foram identificadas, contemporaneamente, no recente e emblemático julgamento da AJDesCargEle 0600118-15.2023.6.00.0000, concluído em 7 de novembro de 2023, e que nortearão as decisões em matéria de (in)fidelidade partidária no pleito de 2024.

Na ocasião, o Tribunal Superior Eleitoral decretou a perda do mandato do deputado federal por São Paulo, Marcelo Lima, após migrar do Solidariedade para o PSB em fevereiro de 2023.

Com relação à hipótese de justa causa para desfiliação prevista no artigo 17, § 6º, da Constituição Federal, a Corte Superior Eleitoral afirmou não ser possível conferir validade jurídica a carta de anuência expedida por comissão provisória municipal de partido político com o desiderato de permitir a desfiliação de deputado federal.

Além desse óbice, também ficou registrada a existência de regra partidária editada pelo Solidariedade, que atribuía exclusivamente ao presidente do diretório nacional da agremiação a competência para conceder e subscrever a concordância quanto à desfiliação de parlamentares federais.

Já sobre a hipótese de justa causa para desfiliação daqueles eleitos por partido que não tenha alcançado a cláusula de barreira (artigo 17, § 5º, da Constituição Federal), o Tribunal Superior Eleitoral consignou que o ato de desfiliação é complexo, abrangendo não apenas o comunicado do trânsfuga ao partido de origem, mas também o comunicado ao juiz eleitoral da zona em que for inscrito[1].

No caso do deputado federal Marcelo Lima, era incontroverso que a comunicação ao partido de origem havia sido efetivada em 14.2.2023, horas antes de o Tribunal Superior Eleitoral julgar a PetCiv nº 0601967-56/DF e deferir a incorporação do PROS pelo Solidariedade. Todavia, Marcelo teria procedido à imprescindível comunicação ao juízo eleitoral tardiamente, apenas no dia seguinte, em 15.2.2023, quando a incorporação já teria garantido ao Solidariedade o acesso aos recursos do Fundo Partidário e a tempo de rádio e televisão.

O entendimento externado pela Corte no referido julgamento põe luz em duas premissas relevantes a serem observadas em situações futuras.

Sobre a Carta de anuência, parece evidente que o Partido é dotado de autonomia suficiente para dispor sobre regras de funcionamento interno que estabeleçam critérios para a liberação do parlamentar que pretenda se desfiliar. Nesse sentido, é lícito à agremiação escolher o órgão partidário competente para emissão da carta de anuência, bem como os critérios específicos que garantam a sua validade.

Todavia, em que pese a referida autonomia, que se encontra inserta na Constituição Federal (art. 17, § 1º), o Tribunal Superior Eleitoral sinalizou ser inviável atribuir ao órgão partidário hierarquicamente inferior a competência para liberação de parlamentar que detenha mandato em esfera superior.

Referido entendimento já havia sido externado em outras oportunidades, por exemplo, quando a Corte Superior Eleitoral determinou ao Avante que fosse retificado seu estatuto a fim de prever que a expedição da carta de anuência deve ser concedida pelo órgão nacional em relação a qualquer mandato eletivo (independentemente da esfera de atuação do parlamentar), assegurando aos diretórios regionais a expedição quando se referir a mandato eletivo estadual, distrital e municipal[2].

Portanto, o que parece claro dos julgados do Tribunal Superior Eleitoral é que apesar de existir autonomia partidária para editar normas de funcionamento interno a respeito da carta de anuência, há que se considerar a necessidade de compatibilidade entre a hierarquia do órgão responsável pela liberação e a esfera de atuação parlamentar do trânsfuga.

Já sobre a hipótese de justa causa para desfiliação prevista no artigo 17, § 5º, da Constituição Federal, que autoriza a migração do parlamentar eleito por partido que não tenha atingido a cláusula de barreira, é certo que o TSE havia de alguma forma postergado o debate sobre eventual prazo para o exercício da liberalidade constitucional.

Com efeito, tramitam na Corte ainda pendente de pronunciamento definitivo as consultas nº 0601975-72 e nº 0601755-74, formuladas ainda em 2018, nas quais o objetivo principal é esclarecer dúvida razoável sobre o marco temporal para o exercício da faculdade.

Considerando o silêncio do dispositivo constitucional, foi indagado especificamente “qual o momento em que o parlamentar pode se beneficiar desta justa causa, sem incorrer em infidelidade partidária? Após o resultado oficial, a diplomação, o início da legislatura?”

Em rigor, embora as consultas tenham se atido ao marco inicial de incidência da justa causa, sem abordar o marco final, certo é que o pronunciamento até o momento externado em julgamento pelo Ministro Sérgio Banhos (acompanhado pelos Ministros Alexandre de Moraes e Mauro Campbell Marques) foi no sentido de que o constituinte não estabeleceu marco inicial ou final nem previu reserva de lei, o que em princípio sugeriria uma inadequação de o Tribunal Superior Eleitoral fixar parâmetro diverso.

Apesar de não haver maioria formada, nas referidas consultas o TSE ao menos sinalizou que a faculdade de que trata o § 5º, art. 17 da Constituição Federal pode ser exercida a qualquer tempo, desde que a partir da proclamação dos eleitos pela Justiça Eleitoral.

No caso do deputado federal Marcelo Lima, a interpretação foi um tanto mais restritiva. Consignou o Eg. TSE, por maioria, vencidos os Ministros Raul Araújo e Nunes Marques, que a regra permissiva da desfiliação sem perda de mandato no caso de não atingimento da cláusula de barreira pelo partido político ao qual se filiou o parlamentar eleito tem incidência apenas enquanto a agremiação ostentar tal condição.

Desse modo, eventual fusão ou incorporação que permitam ao partido alcançar participação no Fundo Partidário e acessar tempo de televisão e rádio constituem marco final para o exercício da desfiliação com fundamento na justa causa prevista pelo artigo 5º, art. 17 da Constituição Federal.

É dizer: a referida hipótese constitucional de justa causa não se traduz em um direito subjetivo a ser exercido de forma incondicionada. Pelo contrário, trata-se de autorização atrelada a uma condição objetiva da grei, de permanecer sem acesso aos recursos financeiros e de visibilidade conferidos a outras agremiações.

Com esse entendimento, a jurisprudência do Egrégio Tribunal Superior Eleitoral se firma em uma interpretação restritiva das hipóteses de justa causa para a desfiliação partidária, inclinando-se, assim como a ordem jurídica, a valorizar o sufrágio partidário.

ARAS, Augusto. Fidelidade partidária: a perda do mandato parlamentar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

NICOLAU, Jairo. Sistemas Eleitorais. 5ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

[1] Res.-TSE nº 23596/2019. Art. 24. Para desligar-se do partido, o filiado fará comunicação escrita ao órgão de direção municipal ou zonal e ao juiz eleitoral da zona em que for inscrito.

[2] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Registro De Partido Político 9508/DF, Relator(a) Min. Raul Araujo Filho, Acórdão de 09/11/2023, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico-239, data 04/12/2023