Quase no apagar das luzes de 2023, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), sinalizou que não desistiu de aprovar a PEC 32, da reforma administrativa, apesar da reconhecida contrariedade do governo. Mas o parlamentar admitiu, em evento, este mês, em Brasília, que, sem o apoio do Palácio do Planalto, uma proposta como essa dificilmente avança.
O Executivo, por sua vez, definiu uma estratégia para se contrapor à PEC 32: um pacote de medidas infraconstitucionais com capacidade de racionalizar as carreiras; modernizar os concursos; e adotar mecanismos de avaliação de desempenho na administração federal, sem mexer na estabilidade dos servidores.
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Acontece que, até agora, o governo enfrenta importantes barreiras políticas para tocar os temas-chave dessa transformação do Estado e tirou pouco do papel. Os desafios, portanto, estão todos recolocados na agenda de 2024.
Em 2023, a principal ação do Ministério da Gestão e da Inovação foi o anúncio do Concurso Nacional Unificado, que deve ser realizado em maio. Os especialistas comemoraram a iniciativa, especialmente porque o provão abre caminho para democratizar o ingresso no serviço público, com a realização de provas em 217 cidades.
Ao todo, o concurso unificado deve permitir o ingresso de 6,6 mil novos servidores, em 22 órgãos federais. Porém, os temas considerados prioritários para efetivamente se contrapor à PEC 32 não são enfrentados apenas com o provão. Muito pelo contrário.
A pesquisadora Vera Monteiro, professora da FGV Direito SP e uma das principais estudiosas do serviço público e do Direito Administrativo no país, também foi convidada para evento em que Lira defendeu a PEC 32, promovido pela Febraban e pela Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF).
Na ocasião, ela listou três propostas que teriam o condão de dar rumo a uma efetiva transformação do Estado, sem mudar a Constituição: o PL dos supersalários, o PL dos concursos e o PLP 539/2018, que disciplina a avaliação periódica de desempenho em União, estados e municípios, inclusive com a possibilidade de demissão.
“Há muita cortina de fumaça nesse discurso de que nós precisamos de uma emenda constitucional para viabilizar uma reforma administrativa eficiente. A própria PEC 32 não muda nada em relação ao mundo atual. Não existe uma bala de prata. Há um pacote de medidas importantes que cabe ao Legislativo e ao Executivo. Só isso é capaz de fazer uma transformação muito importante em matéria de gestão pública para ter o Estado que a gente quer”, avalia Vera Monteiro.
Embora já tramitem há bastante tempo, essas três propostas não estão na agenda prioritária do Congresso. E, por ora, nem do governo.
Obstáculos para transformar o Estado
Os três projetos de lei listados pela professora Vera Monteiro até estão no radar do Ministério da Gestão e da Inovação. Essas propostas, inclusive, têm aliados no MGI. Mas, por diferentes razões, nenhuma delas conta com o apoio enérgico do governo e da ministra da Gestão, Esther Dweck, que estuda outras alternativas.
Já aprovado pela Câmara, o PL dos concursos é motivo de impasse com entidades do funcionalismo, devido aos aspectos relacionados à avaliação comportamental.
O governo chegou a trabalhar a possibilidade de permitir a aprovação da proposta, negociando o veto presidencial dos temas mais controversos. Mas essa ideia ainda não vingou, e o projeto segue parado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Até o momento, o governo trabalha com uma espécie de proposta alternativa, que deve ser encaminhada por meio de decreto, entre janeiro e fevereiro. Ela é limitada às regras para o recrutamento de servidores no âmbito federal.
Os estudiosos do tema, por sua vez, entendem que a modernização dos concursos precisa alcançar os estados e, sobretudo, os municípios.
“Cabe ao Legislativo pensar (a reforma administrativa) em termos de Brasil, não apenas em termos de União federal. São mudanças, que já tiveram a contribuição da Câmara, que podem melhorar muito a qualidade da máquina”, avaliou Vera Monteiro, no evento da Febraban.
Consultada, a Febraban informou que apoia conceitualmente a necessidade de uma reforma administrativa, opinião expressa em nota, na última semana, sobre a elevação do rating do Brasil pela S&P, pela Fitch e pela Moddy’s.
Supersalários e o Judiciário
No caso do PL dos supersalários, o imbróglio também envolve o Poder Judiciário. A proposta chegou a ser defendida publicamente pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Ela discrimina os tipos de rendimentos extras de servidores da ativa, aposentados e pensionistas e disciplina quais deles podem ficar fora do teto, hoje de R$ 41.650,92.
Porém, o governo se viu obrigado a deixar esse tema em segundo plano ao longo de 2023 para priorizar o avanço da pauta econômica no Congresso. Para 2024, o embate também se dará na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Como no caso dos concursos, o texto já foi aprovado na Câmara. O PL tem impacto fiscal, apesar das concessões feitas, em relação ao texto original, para ampliar a gama de rendimentos extras que podem extrapolar o teto. Em novembro, o senador Eduardo Gomes (PL-SE) foi designado relator na CCJ.
Acontece que a magistratura se opõe à proposta. E o mesmo Eduardo Gomes também é o relator da PEC 10, que concede adicional por tempo de serviço de 5% para magistrados, promotores e procuradores da República da ativa e aposentados, a cada cinco anos.
Hoje, na bolsa de apostas, é mais fácil votar a PEC 10 do que o PL dos supersalários.
Já no caso do PLP 539, o governo não pretende abraçar uma proposta que permita a demissão do servidor público com desempenho insatisfatório. De acordo com o texto, o servidor com desempenho insatisfatório em duas avaliações periódicas consecutivas – ou em três avaliações alternadas – pode perder o cargo.
Segundo o Executivo, os mecanismos de avaliação de desempenho ainda precisam de amadurecimento e, por enquanto, está descartado um apoio público a essa proposta, que encontra respaldo em parlamentares que apoiam a PEC 32.
E, finalmente, para além dos PLs que já tramitam no Congresso, o governo tem o desafio de costurar uma das reformas mais urgentes do serviço público federal: a racionalização das carreiras e das tabelas remuneratórias, com a ampliação das chamadas carreiras transversais e a redução das desigualdades entre servidores com atividades similares.
Essa tarefa, a cargo do secretário de Gestão de Pessoas do MGI, José Celso Cardozo Jr, não deve ser concluída antes de 2026.