A legislação exige do contribuinte que queira discutir a cobrança de créditos tributários por meio de Embargos à Execução a apresentação de uma das modalidades de garantia previstas na Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/80), dentre as quais se encontra o seguro garantia.
Muito embora o seguro garantia seja equiparado ao depósito em dinheiro, tem se tornado cada vez mais comum a União requerer a liquidação antecipada da referida garantia após a prolação de sentença que julga improcedentes os Embargos à Execução Fiscal.
Nesses pedidos, a União argumenta que, devido à ausência de efeito suspensivo no Recurso de Apelação a ser interposto pelo contribuinte, não haveria obstáculo para o prosseguimento da Execução Fiscal.
Em decorrência da liquidação antecipada do seguro garantia, os valores assegurados serão objeto de imediato depósito judicial, o qual posteriormente será repassado para a Conta Única do Tesouro Nacional, podendo estes valores serem utilizados pelo Estado para fins orçamentários.
A jurisprudência, que por muito tempo foi desfavorável à liquidação antecipada do seguro garantia, atualmente tem se posicionado no sentido de ser possível a liquidação antecipada quando não há atribuição de efeito suspensivo ao recurso de apelação interposto pelo contribuinte[1].
Sobre esse aspecto, é importante destacar que, a fim de tentar pacificar a jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou essa matéria à sistemática dos recursos repetitivos por meio dos Recursos Especiais 2.077.314/SC, 2.093.036/SP e 2.093.033/SP, os quais ainda pendem de apreciação.
Assim, mesmo que não encerrado o processo judicial, com possível reforma da decisão de 1ª instância pelos tribunais, o contribuinte acaba sofrendo de maneira desmedida o impacto da cobrança do crédito tributário, tendo que retirar de seu caixa valores muitas vezes milionários (até bilionários), apenas para possibilitar que a União utilize os recursos depositados judicialmente, ainda que não possa convertê-los em renda definitivamente, o que somente será possível após o trânsito em julgado da ação judicial.
Embora o tema mereça maior análise, em especial considerando a possibilidade de o contribuinte arguir o efeito suspensivo em sua apelação no tribunal de 2ª instância, outro aspecto relevantíssimo tem sido deixado de lado nas discussões sobre a liquidação antecipada de seguro garantia, que merecerá nossa atenção nesse breve artigo: a situação especial das empresas em recuperação judicial.
Nesse sentido, muito embora o posicionamento recente do STJ seja desfavorável aos contribuintes em geral, na medida em que vem permitindo a liquidação antecipada da garantia prestada, é preciso se destacar que este entendimento não pode ser aplicado de forma indiscriminada, sendo necessário que se faça uma análise adequada do caso, em especial quando se trata de empresas em recuperação judicial.
Nas decisões que deferem o pedido da União de liquidação antecipada de garantia é possível se verificar a limitação a apenas citar o atual posicionamento do STJ, sem fazer a devida análise da condição de uma empresa em recuperação judicial. É dizer, uma vez que sua situação de vulnerabilidade econômico-financeira será desproporcionalmente impactada por uma medida dessa natureza, desconsidera-se por completo o fato de que a liquidação antecipada do seguro garantia poderá, inclusive, levar à convolação em falência da empresa, seja pelo descumprimento do plano de recuperação judicial ou pelo descumprimento de obrigação não sujeita à recuperação judicial.
A preocupação com a superação da crise econômico-financeira da empresa é a própria finalidade da recuperação judicial. Para que seja assegurada a recuperação econômica da empresa, a Lei 11.105/05 determina uma série de providências, tal como a suspensão de execuções de dívidas contra a empresa pelo prazo de 180 dias (prorrogável por igual período), tudo para que a empresa, ao iniciar sua recuperação judicial, tenha assegurado um fôlego financeiro para que seja viabilizado seu soerguimento.
Embora os créditos tributários estejam excluídos dessa suspensão – o chamado stay period – a lei não permite que créditos tributários sejam alheios à recuperação judicial, sendo para isso determinado até mesmo que o juízo da execução fiscal coopere com o juízo da recuperação judicial, para que eventuais atos de constrição que recaiam sobre bens essenciais ao prosseguimento da atividade da empresa sejam substituídos.
Seria um contrassenso até mesmo às próprias garantias previstas em lei que os créditos tributários já garantidos por apólice de seguro garantia em juízo prosseguissem em cobrança, com nefastos prejuízos financeiros ao plano de recuperação judicial e à própria continuidade da atividade empresarial.
É o contrário da lógica da recuperação judicial privilegiar créditos tributários já garantidos em juízo em detrimento da recuperação da empresa. Isso sem considerar que, neste caso, se viola, também, o princípio da menor onerosidade da execução para o devedor, uma vez que, dentre os meios menos onerosos para garantir o juízo, escolhe-se aquele mais oneroso para a empresa em recuperação judicial.
Nesse aspecto, o próprio STJ (ainda que apenas em decisões monocráticas), em casos de liquidação antecipada da garantia de empresas em recuperação judicial, tem afastado essa possibilidade, à luz dos princípios da preservação e função social da empresa, proporcionalidade, razoabilidade e princípio da menor onerosidade, devido ao grave dano consubstanciado no comprometimento do Plano de Recuperação Judicial.[2]
Entretanto, apesar desses precedentes – que não são colegiados – a matéria pende de consolidação na jurisprudência, o que gera inaceitável insegurança jurídica para as empresas em recuperação judicial.
Há que se perguntar, considerando os valores jurídicos em jogo, se seria razoável e proporcional inviabilizar a atividade de uma empresa, potencialmente prejudicando inúmeros empregos – direta e indiretamente – para que a União utilizasse valores que podem nem mesmo virem a ser convertidos em renda, caso a decisão judicial seja posteriormente reformada.
Mais que isso: seria condizente com o objetivo precípuo da recuperação judicial, que é justamente viabilizar a superação da crise econômico-financeira da empresa?
Entendemos que não. Até mesmo por uma perspectiva arrecadatória, encerrar a atividade empresarial para privilegiar uma liquidação antecipada de seguro garantia terminaria por inviabilizar o adimplemento de inúmeros outros créditos tributários, acabando por diminuir a pretensão arrecadatória do Estado, sob a justificativa de possibilitar uma liquidez de caixa do Estado que é meramente temporária, em prejuízo de uma empresa que tenta viabilizar sua atividade e garantir arrecadação contínua aos fiscos em anos futuros, de acordo com os trâmites legais.
Com a provável definição do tema em sede de recurso repetitivo, a questão que não pode deixar de ser respondida – mesmo que o STJ decida de maneira desfavorável aos contribuintes – é se este precedente se aplica para empresas em recuperação judicial.
A resposta poderá ter impactos desastrosos não só para as empresas em recuperação judicial, mas também para os inúmeros empregos que dependem destas empresas. É esperar e ver.
[1] Cite-se nesse sentido o entendimento externado no AgInt no AREsp 1.756.612/RJ, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe de 03/10/2022 e AREsp 2.160.267/SP, Min. Assusete Magalhães, DJe 18/10/2022.
[2] Ver REsp 2065252/RJ de 26/04/2023, e AgInt no Resp 1918593/RJ, de 28/04/2022.