Os discursos do recém-empossado presidente argentino Javier Milei são marcados pela demonização dos inimigos internos. E isso não é por acaso. A possibilidade de que não consiga governar — já que ele não tem maioria no Congresso, nem o apoio amplo dos militares, diferentemente do que passou com Jair Bolsonaro no Brasil — levam-no a empreender uma retórica sinalizando que seu governo não seria apenas pior que a ação de supostos sabotadores da pátria.
Tal estratégia também cai como uma luva para ajudar o novo governo a vender soluções austeras, as quais exigem ainda mais sacrifícios da população argentina amedrontada pela maior crise econômica desde o colapso político-econômico de 2001. Com a derrota do projeto de Constituição reacionária do Chile no último domingo (17), a Argentina, assim, torna-se o grande laboratório do neoliberalismo autoritário no século 21.
Durante a posse de Milei, nas ruas que davam acesso à Plaza de Mayo e à Casa Rosada, viu-se uma pequena multidão de pessoas com a camisa da seleção argentina e a bandeira celeste; os ambulantes faziam sucesso com bandeiras, camisetas e bonés com dizeres como “uma Argentina diferente é impossível com os mesmos de sempre”, “escolho acreditar e viver em liberdade”, “a fé vence o medo”. Fé, liberdade e esperança no novo regiam os sentimentos dos argentinos presentes na posse.
Liberdade e esperança de um lado, intervenção e corrupção de outro. Não foi por acaso que todas as mulheres próximas a Milei — notadamente, sua irmã e secretária-geral de governo, Karina Milei, e a vice-presidenta, Victoria Villarruel — vestiam trajes brancos. Até mesmo Michelle Bolsonaro seguiu o dress code. Uma leitura possível se refere à separação entre puros e impuros, na qual puros seriam Milei, sua comitiva, e seus apoiadores, e os impuros seriam os “corruptos”.
Na extrema direita contemporânea, observa-se uma preocupação com a integridade, a segurança, a pureza e a reprodução do corpo social, de modo que a alcunha “corrupto” se relaciona tanto a temas econômicos quanto com a pauta de costumes, no sentido de libertar as mentes consideradas corrompidas. Aqui aparece a percepção de que a pureza se encontra naquilo que é espontâneo e, por isso, natural ao ser humano. Essa assertiva também se relaciona com a ideia da espontaneidade do livre mercado e seu principal complemento simbólico no neoliberalismo autoritário — a moralidade tradicional.
A construção da figura do inimigo interno não é um caso exclusivo argentino: tem sido uma prática mobilizadora recorrente na arena política latino-americana. Intensamente acionada durante as ditaduras militares no continente, tal construção, à época, teve os comunistas como personagens principais desse imaginário, despertando nas populações um sentimento de medo por meio de um discurso que privilegiava o pânico moral. Essas ideias, que circularam na América do Sul durante a Guerra Fria, podem ter moldado o caminho por onde continua a se travar a disputa política contemporânea.
A construção do inimigo interno mantém uma relação circular com a mobilização política de medos. Tomemos o pleito eleitoral de 2022 no Brasil. O tema da corrupção perdeu relevância, sem deixar de ser importante. E emergiu o tema da liberdade, que funcionou como uma resposta simples à pergunta “por que o PT é o inimigo?”. A resposta, nessa lógica, era fácil na perspectiva de extrema direita: porque ele é autoritário e manipulador. Além de reforçar a imagem do PT como inimigo interno, tal discurso também ajudou a construir o sentido pelo qual se luta: “lutamos pela nossa liberdade”, argumentam os partidários do bolsonarismo, tal como fazem agora os mileístas.
De fato, a liberdade também aparece como tema aglutinador na extrema direita argentina, que se opõe principalmente às noções de corrupção e de intervencionismo estatal. Neste contexto, o peronismo, ou “la casta”, é visto como a fonte de todos os males recaídos sobre a população argentina; o peronismo, aqui, pertencente ao campo da monstruosidade, do indizível, do mal absoluto. Precisa, portanto, ser retirado da cena pública.
Milei, assim como Bolsonaro, mobilizou os temas do nacionalismo e do patriotismo não para se opor a uma ameaça externa — como a extrema direita europeia fez ao eleger os imigrantes como o foco de todos os males — mas como um símbolo para fazer a oposição entre “o povo” e “as elites”. Estamos diante da produção de diagnósticos, ou seja, da exposição dos problemas e dos culpados, para assim poder apresentar a solução. Mesmo que essa solução signifique mais um ciclo recessivo.
No dia da posse foram cortados quase todos os ministérios relacionados a políticas sociais. De 18 pastas, restaram apenas nove. Dois dias depois da posse, a motosserra de Milei entrou em ação, com o anúncio de dez medidas econômicas. Em seu discurso de posse, Milei afirmou que o corte de gastos, “ao contrário do passado, recairá quase inteiramente sobre o Estado e não sobre o setor privado”. No entanto, várias destas medidas afetarão diretamente o bolso e, portanto, a qualidade de vida dos argentinos.
Governar assim não será fácil. Dentre os apoiadores de Milei, existem aqueles que são mais fanáticos e que realmente compraram o discurso da fé e da esperança. Para estes, o lema “acredite no plano” é a regra. Por outro lado, parte do eleitorado de Milei optou por um voto de protesto (contra o peronismo) ou o voto no mal menor. A paciência deste segundo grupo é menos resiliente e pode passar a ecoar as vozes críticas ao presidente argentino. Na Argentina, os movimentos sociais têm uma capacidade de mobilização nas ruas maior do que no Brasil, herança da atuação do movimento obrero do país, cuja força de assembleia inspirou o #NiUnaMenos e as mobilizações feministas pró-aborto dos últimos anos.
Em todos os países onde a extrema direita ascendeu nos últimos anos, a característica comum foi fazer ruir as democracias por dentro. Os eleitos por voto impetraram em cada país legislações que enfraquecem a Justiça, o Legislativo e as mídias. Mesmo sem golpes de Estado, são governos autocráticos. Na autocracia argentina recém-instalada, Milei vai ao âmago de um dos patrimônios da democracia naquele país: o direito ao protesto nas ruas.
A frase proferida por Milei, de que “dentro da lei tudo e fora da lei nada”, já está sendo aplicada: em 14 de dezembro, foi publicado no Boletim Oficial de governo o chamado Protocolo Bullrich — em alusão a Patricia Bullrich, ministra de Segurança de Milei, apelidado também de “protocolo antipiquetes”.
As medidas deste protocolo — que foi divulgado sob o título “Sem liberdade não há ordem, e sem ordem não há progresso” — têm como objetivo coibir e reprimir protestos sociais, e preveem a identificação e o registro dos dados de indivíduos e organizações que operem como “autores, cúmplices e instigadores” de mobilizações, bem como a não necessidade de ordem judicial para a intervenção das forças de segurança.
A criminalização dos movimentos sociais e dos protestos já está em curso, o que pode levar a intensos embates nas ruas. Não obstante o Protocolo Bullrich, a primeira grande marcha de protesto já está marcada: 20 de dezembro, com a expectativa de comparecimento de 50 mil pessoas.
A suposta ameaça de um inimigo interno pode não ser suficiente para manter o apoio ao governo, de modo que a frase “no hay plata”, sublinhada por Milei em seu discurso de posse e vista em camisetas usadas pelos argentinos nas ruas, pode se virar contra o feiticeiro — ou melhor, contra “el loco” — e expressar a frustração e a impaciência de um povo que está preparado para protestar, mesmo com a possibilidade concreta de maior repressão do Estado.
Como disse Verónica Gago, em um post publicado no Instagram no dia da posse: “Esta frase [no hay plata] convertida em camiseta faz do realismo uma reivindicação poderosa contra todo discurso”. Sem dinheiro, resta ao povo argentino defender o que lhe restou: a dignidade, a qual o governo Milei quer claramente surrupiar.