Sempre digo aos meus alunos, nas aulas de Direito Aduaneiro, que os trabalhos desempenhados pelo GATT/OMC para limitar os direitos alfandegários envolveram duas frentes: alíquota e base de cálculo.
Se você quer limitar um tributo ad valorem, não faz sentido limitar a base de cálculo e deixar a alíquota ilimitada; do mesmo modo, não atingirá o objetivo se limitar a alíquota, mas não a base.
Essa lição, aparentemente simples, é a grande polêmica da vez na discussão a respeito da (não) incidência do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica.
Apenas recapitulando, o STF, por unanimidade, julgou improcedente o pedido formulado na ADC 49, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar 87/1996.
Em breves linhas, restou decidido que (1) o ICMS não incide nas transferências, inclusive as interestaduais; (2) o estabelecimento remetente pode manter os créditos relativos às operações anteriores; e (3) a forma de transferência de tais créditos entre Estados de origem e destino deveria ser disciplinada até 31/12/2023.
Após medidas açodadas do Confaz, o Congresso Nacional, recentemente, aprovou o PLP 116/2023, que em breve deve ser publicado sob a forma de lei complementar. Segundo o PLP, há duas metodologias para transferir o crédito relativo às operações anteriores, a primeira prevista no futuro §4º do artigo 12 da LC 87/1996 e a segunda no §5º do mesmo dispositivo.
Vale notar, de início, que a escolha entre uma metodologia ou outra é livre por parte do contribuinte. Desse modo, ele pode fazer as duas contas e escolher a que lhe pareça mais proveitosa, especialmente considerando a existências de eventuais incentivos fiscais e créditos acumulados.
O ponto que se coloca, portanto, é: como fazer os cálculos. Em comum, ambas as metodologias consideram a alíquota interestadual que seria aplicável se a transferência estivesse sujeita ao ICMS. Ora, se temos duas metodologias de cálculo e as alíquotas são idênticas, parece evidente que a diferença deve estar na base de cálculo. Mas aí que chegamos na conexão com o início do artigo: o PLP 116/2023 não traz qualquer limitação ou indicação de qual a base de cálculo a ser adotada em cada uma das metodologias de cálculo.
No §4º, o legislador trata de “valor atribuído à operação de transferência realizada”. E aí pergunta-se: atribuído por quem? Pelo contribuinte? Pelo Confaz? Pela própria LC 87/1996? Pelas leis ordinárias estaduais? Não há respostas!
Já o §5º diz que a transferência pode ser equiparada a uma operação tributada. Do mesmo modo, restam dúvidas sobre qual a base de cálculo dessa operação: há livre escolha por parte do contribuinte? Deve-se aplicar o disposto no artigo 15 da LC 87/1996?
Ora, se o legislador complementar pretendia regular e limitar a transferência de créditos de ICMS entre estados de origem e destino, como foi tão inocente a ponto de prever apenas as alíquotas, sem se importar com as bases de cálculo?
Curioso que o Convênio ICMS 178/2023, do Confaz, embora editado antes da aprovação do PLP, até apresenta, em sua cláusula quarta, opções de base de cálculo, mas elas justamente foram julgadas inconstitucionais pelo STF na já mencionada ADC 49.
Diante disso, o cenário que se coloca para todos os envolvidos, contribuintes e estados, é de pura incerteza. O resultado disso, inevitavelmente, é macrolitigância tributária. A título de exemplo, contribuintes que possuem incentivos fiscais ou créditos acumulados de ICMS na origem pretenderão ter a maior base de cálculo possível na transferência; por outro lado, aqueles que tiverem incentivo fiscal (com crédito presumido em substituição aos créditos da não cumulatividade) ou saldos credores no destino preferirão aplicar a menor base de cálculo possível.
Feliz 2024 a quem precisará decidir o que fazer nas transferências a partir de 1º de janeiro!