Lições da Constituição brasileira para a maturidade democrática

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A Constituição da República brasileira refundou a democracia em 1988 e tem garantido estabilidade democrática e econômica. Ao final deste ano ímpar, o Brasil certificou na história o acerto da afirmação do deputado Ulysses Guimarães: “A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”.

Sem colocar tintas novas em paredes velhas, a Constituição de 1988 prevê garantias e remédios para a efetivação de direitos e, ainda, tem provado possuir as qualidades de resiliência e altivez outrora sonhadas para ela. Não faltam firmeza e adaptabilidade, as quais têm se manifestado mesmo diante de graves ameaças. O projeto social emancipatório que consiste na espinha dorsal constituinte conta com o anteparo de um engenhoso mecanismo de freios e contrapesos e se reafirma por meio de instituições desenhadas para exercer tais competências.

Com uma Constituição vocal no reconhecimento de direitos e uma jurisdição constitucional singular, o Brasil logrou alcançar notáveis mudanças estruturais e institucionais nas últimas décadas. A Constituição possibilitou o surgimento de outras epistemes, ensejando uma compreensão do direito constitucional que podemos tomar como escrita “a contrapelo”, na dicção de Walter Benjamin.

Essa visão benjaminiana da história constitucional prima por colocar o foco na declaração constante dos direitos sociais como condição de exercício de liberdades individuais, na garantia de direitos de populações indígenas e quilombolas; na afirmação dos direitos dos trabalhadores; na construção de sistemas econômicos e produtivos cujos laços sejam solidários; nas uniões do amor em sua plurivocidade; nas políticas de equidade racial e de gênero; na defesa de direitos da população encarcerada. Busca, dentro do Estado de Direito democrático, equilibrar soberania; cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e pluralismo político.

Trata-se, pois, do despertar de uma constitucionalidade dialética e crítica à racionalidade instrumental contemporânea, pois a catástrofe do fim da democracia pode emergir da combinação insensível entre “progresso técnico e regressão social”, para utilizar as lúcidas palavras de Nilo Agostini.

Em 2023 tivemos mostras nítidas de nosso processo de decantação e sedimentação constitucional. A maturidade do documento tem decorrido de movimentações sincopadas entre as noções de força e de resiliência, as quais se dão em concreto no canteiro de obras da democracia.

Conforme as lições dos professores Ana Laura Pereira Barbosa e Oscar Vilhena Vieira, a característica mais relevante dessa Constituição talvez seja um verdadeiro “compromisso maximizador”. A Constituição tem garantido uma sábia alternância entre o gradualismo de certas mudanças e a ousadia nos novos sentidos e direitos que estabeleceu em favor de partícipes do projeto de interpretação constitucional.

No campo dos direitos sociais, a Constituição brasileira foi generosa e buscou reparar injustiças. Instituiu uma previdência social e um Sistema Único de Saúde sem paralelos no mundo. Tratou ainda das relações trabalhistas, ampliando o arcabouço de direitos erigido ao início do século XX, no âmbito da Consolidação da Leis do Trabalho.

Em alguma medida, anteviu a necessidade de fortalecimento da mediação entre capital e trabalho, como pilar da noção de social-democracia. Robusteceu esse arranjo de equilíbrio de forças, de modo a que a Constituição possa seguir sendo invocada e efetivada em momento global no qual grassam a precarização das relações de trabalho e um capitalismo de moldes financeiros.

A Constituição não encontrou o melhor estado de coisas, mas deu cabo dessas lutas sem esmorecer; alavancou temas de direitos humanos a patamares que não se supunha possíveis em uma sociedade recém-saída de um período autoritário.

À míngua da existência de capacidades institucionais para a implementação desse programa de amplificação de direitos, a Carta de 1988 previu uma cláusula de acesso à justiça sem barreiras temáticas, de modo que nenhuma lesão ou ameaça de lesão possa ser excluída da apreciação por parte do Poder Judiciário.

Assim é que, poucos anos após a promulgação da Constituição, houve um aumento exponencial no ajuizamento de ações judiciais. A professora e pesquisadora Maria Tereza Sadek demonstrou em seus estudos junto ao Conselho Nacional de Justiça que, entre 1990 e 2002, houve um aumento de 270% do número de processos que ingressaram no Poder Judiciário.

O aspecto simbólico desse aumento refere-se à construção de um discurso de direitos e de cidadania, ao passo em que, no âmbito concreto, assistiu-se a uma pressão sobre o Estado para o cumprimento das promessas constitucionais. Pairando acima das discussões teóricas sobre ativismo judicial, o clamor por direitos e a letra da Constituição trouxeram o Judiciário brasileiro para a arena da vida.

A nossa alargada compreensão acerca do acesso à justiça fez com que a Justiça participasse da articulação da política pública de dispensação de medicamentos de HIV/AIDS ao início da década de 1990, conformando um paradigma mundial de intervenção judicial positiva. A nova Constituição maximizou o acesso à justiça também por meio da criação de Juizados de pequenas causas, pela institucionalização das Defensorias Públicas, fortalecendo mecanismos de tutela de direitos difusos e do controle de constitucionalidade, para ficar em alguns exemplos. Redesenhou o Ministério Público à luz da promoção da justiça e dos direitos sociais; contemplou as prerrogativas da advocacia e as garantias da magistratura, albergou as funções essenciais à justiça.

Tornou-se, pois, sinônimo de institucionalidade.

Contemporaneamente, questões afetas à temática de direitos humanos encontram caminho célere para chegar ao Supremo Tribunal Federal, mitigando a problemática do direcionamento da jurisdição constitucional brasileira a demandas corporativas ou supostamente elitistas. O controle de constitucionalidade mostra-se, cada vez mais, acessível, democrático e plural. O que traz sístoles e diástoles como decorrência lógica, com controvérsias e debates sempre legítimos.

De outra parte, a cláusula antidiscriminatória do art. 3º, inciso IV, da Constituição, segundo a qual se deve promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, desdobrou-se numa sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal afirmativa da equidade de gênero, raça e da erradicação de desigualdades regionais em múltiplas dimensões.

A nossa Corte Constitucional chancelou a política de ações afirmativas voltada a fomentar o ingresso de estudantes negras e negros em nossas universidades públicas; tratou das uniões civis homoafetivas, permitindo o seu reconhecimento; afirmou direitos à autodeclaração de seu gênero e nome.

No campo dos direitos das mulheres, o STF reforçou a aplicação da Lei Maria da Penha. Decidiu ainda que o tempo menor de contribuição das mulheres não pode ser usado para diminuir a concessão do benefício em planos de complementação de aposentadoria, por não se admitir uma violação ao princípio da isonomia. A Corte baniu a tese da legítima defesa da honra para atenuar crimes de feminicídio, no bojo da ADPF 779. Firmou-se a possibilidade de substituição de prisão preventiva por domiciliar para mulheres gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência.

Tivemos ainda julgamentos importantes sobre a cota de gênero para acesso aos recursos do fundo partidário e, por último, mas não menos importante, o Plenário do STF declarou inconstitucionais trechos de dispositivos da reforma trabalhista que admitiam a possibilidade de trabalhadoras grávidas e lactantes desempenharem atividades insalubres.

Portanto, a considerar esses avanços, 35 anos depois, a Constituição nos apresenta um país ainda marcado por desigualdades, contradições e desafios, mas assaz melhor do que ela encontrou. Ela universalizou direitos, estabilizou a economia, revigorou as esperanças e certezas de estar sendo alicerçada uma sociedade livre, justa e solidária.

Amadurecida pelo sereno desafiador da vida social, política e institucional, a Constituição nos lega lições.

Buscando instaurar um estado de efetivo bem-estar, a nossa Carta de 1988 buscou romper com lógicas de estratificação social, de corporativismo, de hierarquias raciais e sociais. Acenou para aqueles que vinham sendo invisibilizados. Para reescrever as narrativas da nossa história constitucional, atentou para as “pedras miúdas”, para as pessoas talvez esquecidas, para os relatos das ruas, conforme expressões do historiador Luiz Antonio Simas. É uma Constituição pode se alinhar, como tal, aos já referenciados métodos benjaminianos de questionamento da história universal. É uma Carta que consegue se colocar em identificação profunda com uma temporalidade porosa entre passado, presente e futuro.

E, não se pode deixar de lembrar, que, para além do seu papel de garantidora de direitos, a Constituição Federal demonstrou resistência aos ataques sofridos pela democracia brasileira. Combinando resiliência, como adaptabilidade, e resistência, esta significando uma força que se opõe à outra, a Carta não se curvou a movimentos populistas e autoritários, à circulação de desinformação, aos ataques violentos contra o Estado de Direito, testemunhados com mais agudo assombro no dia 8 de janeiro do presente ano.

Amarrada à Constituição e à institucionalidade, qual Ulisses de Homero, a Justiça não se abalou com golpes e intimidações. Abriu os ouvidos apenas à Constituição e às suas cláusulas pétreas democráticas, como bem pontuou metaforicamente o filósofo norueguês Jon Elster.

A democracia seguirá sendo uma obra que se constrói a partir da pluralidade de visões, da convivência harmônica entre diferentes e da circulação de informações de qualidade, com plena liberdade de comunicação e de expressão.

Assim, o aniversário de 35 anos da Constituição Federal, nesse especial marco da sua trilha de maturidade, é uma ocasião de reavivamento dos compromissos democráticos e fraternos de um país que, com a sua Carta, tem se vocacionado a utilizar a ferramenta do constitucionalismo como feixe de luz de transformação da realidade.

Começaremos 2024 com a Constituição resistente e com a força da democracia defensiva. Firmeza e serenidade, discrição e equilíbrio, mirando um futuro habitável, sem descurar as ameaças que ainda pairam no horizonte, aqui e alhures, a demandar uma esperança vigilante.

Como nos alertara Guimarães Rosa, “quem elege a busca, não pode recusar a travessia”. Não será sem fluxos e contrafluxos, avanços e resistências, a estrada da vida em Constituição e com a Constituição. Por isso, essa ocasião é, tanto mais, a de celebração das experiências ricas nas quais a realidade da vida tem se amalgamado à normatividade da Constituição, conferindo-lhe sentido.

O juiz Oliver Wendell Holmes da Suprema Corte norte-americana lembrou, certa feita, que, “assim como a vida, a Constituição é um experimento”. Celebremos o nosso experimento de justiça em concreto, a força das pequenas grandes histórias em que a Carta se posicionou a serviço da afirmação de direitos no equilíbrio de deveres e responsabilidades. Quanto mais olharmos e estivermos sensíveis às demandas e conquistas dos Joãos, Marias e Josés que estão por trás dos autos judiciais, mais veremos quão bela jornada tem sido a nossa sob a égide da Carta de 1988.