O direito de crença é um direito da personalidade. Afinal, a liberdade de eleger uma religião (ou nenhuma) e o direito de exercê-la segundo as próprias escolhas e valores reverbera no Direito Civil enquanto um conteúdo material e imaterial/moral da pessoa. Assim, a liberdade de crença constitui um elemento da própria identidade da pessoa que, inserida em determinado contexto sociocultural, escolhe a forma como quer ser e se realizar no mundo.
Todavia, no Brasil, as minorias afro-religiosas vivenciam, desde sua diáspora forçada, diversas violações ao exercício de seu direito à liberdade de crença, a partir do chamado racismo religioso. Desde a hoje superada imposição do Catolicismo como religião oficial do Estado, à criminalização das práticas de “curandeirismo” (ainda vigente!), é inegável o tratamento discriminatório direcionado a hábitos religiosos diversos dos cristãos, já aceitos e incorporados como “naturais” pelo inconsciente coletivo.
Nesse contexto, o combate às crenças de matriz africana é, por muitas vezes, acolhido enquanto dogma religioso. Consequentemente, as suas divindades são demonizadas e seus praticantes são pejorativamente rotulados de “macumbeiros”, bem como se tornam alvo de diversas agressões físicas e psicológicas. Também o espaço físico de seus tempos, eventos e monumentos dispostos em espaço público são reiteradamente violados.
Refletir como o Direito Civil e a abordagem civil-constitucional dos direitos da personalidade pode desempenhar um papel mais efetivo na salvaguarda da liberdade de crença das minorias afro-religiosas mostra-se, portanto, essencial. A esse respeito, é possível mapear na jurisprudência alguns casos emblemáticos, que oferecem bases importantes para a construção de um Direito mais inclusivo e garantidor de direitos fundamentais. Nesta coluna, destaca-se o caso da Rede Record de Televisão e do direito de resposta.
Em 2004, o Ministério Público Federal (MPF), o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (ITECAB) e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (CEERT) ajuizaram Ação Civil Pública em face das emissoras Rede Record de Televisão e Rede Mulher de Televisão.
Isso porque, durante os programas “Mistérios” e “Sessão de Descarrego”, transmitidos pelas duas emissoras, foram proferidos diversos insultos às religiões de matriz africana, a partir de ofensas a seus símbolos e ritos. Como exemplos das agressões, a ação cita trechos em que ex-adeptas de religiões afro-brasileiras, convertidas à Igreja Universal, são chamadas de “ex-mãe de encosto”, “ex-bruxas” e acusadas de servir aos “espíritos do mal”.
No dia 5 de abril de 2018, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) confirmou, por unanimidade, o direito de resposta às religiões de origem africana, devendo as emissoras conceder estrutura completa para a produção de quatro programas de TV, com duração mínima de uma hora cada, a serem exibidos duas vezes, totalizando oito exibições por emissora, observando o intervalo de sete dias entre uma e outra.
As exibições deveriam priorizar conteúdos informativos e culturais para esclarecer aspectos sobre a origem, tradições, organização, rituais e outros elementos, com o propósito de recompor a verdade. Além disso, as transmissões deveriam ser precedidas de pelo menos três chamadas durante a programação, nos mesmos padrões de outras atrações, com observância à abrangência territorial dos programas que praticaram as ofensas.
Vale a pena ressaltar que a desembargadora federal Consuelo Yoshida, relatora do acórdão, registrou, tal como defendido nesta coluna, que a Constituição resguarda o direito à liberdade religiosa, elevando-o à categoria de direito fundamental e direito da personalidade (art. 5º, VI e VIII da Constituição Federal).
A desembargadora também chamou atenção para o fato de que a religião estabelece uma conexão entre seu seguidor e o divino/sagrado, que se expressa por meio dos cultos, palavras, cerimônias, costumes, vestimentas, enfim, todo um sistema que é particular aos seus membros. Ademais, destacou que liberdade religiosa significa que ninguém será privado da própria crença religiosa em razão da do outro, incumbindo a cada pessoa escolher, mudar ou aderir a uma religião quando achar conveniente, resguardado também o direito de não crer.
De forma igualmente relevante, Yoshida chamou atenção para o fato de que o respeito e a preservação das manifestações culturais dos afrodescendentes são fundamentais, por fazerem parte do processo civilizatório nacional, a ensejar a tutela do art. 215, caput e §1º da CF/88.
As emissoras recorreram, apresentando Recurso Especial dirigido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Entretanto, antes que o recurso fosse julgado, o processo foi encaminhado ao Gabinete de Conciliação e a batalha judicial, que durou quinze anos, chegou a um acordo entre as partes.
Assim, ficou acordado que a Record teria de vincular quatro programas em sua programação, três com conteúdo informativo e um com conteúdo documental sobre a própria Ação Civil Pública que levou à condenação, com duração de 20 minutos, concebidos e produzidos pelas entidades ofendidas, além de ser estabelecida uma indenização no valor de R$ 300 mil reais para o ITECAB e CEERT, cada.
Esse caso ilustra como o racismo religioso pode assumir contornos substanciais, e a partir das grandes mídias, lesar todos os praticantes de religião de matriz africana. Nesse cenário, a concessão do direito de resposta se apresenta como importante ferramenta jurídica, capaz de promover o reparo aos danos advindos dessas agressões.
Segundo Lopes, o direito de resposta, é “um direito positivo, na medida em que impõe uma prestação, […] e também um direito potestativo, que pode ser exercido extrajudicialmente em face do órgão da imprensa responsável pela veiculação da notícia”. Além disso, “o direito de resposta deve ser proporcional à ofensa, e não conter agressão que possa desencadear uma nova resposta. Ele tem o aspecto definitivo de compensar a injúria ou a difamação divulgadas”.
Contribui para o entendimento do instituto do direito de resposta a seguinte definição, extraída de precedente do Superior Tribunal de Justiça:
“O direito de resposta tem contornos específicos, constituindo um direito conferido ao ofendido de esclarecer, de mão própria, no mesmo veículo de imprensa, os fatos divulgados a seu respeito na reportagem questionada, apresentando a sua versão da notícia ao público.”
É importante ainda destacar que tal prerrogativa é garantida não apenas pelas disposições atinentes à tutela dos direitos da personalidade do Código Civil, mas também de maneira expressa pelo art. 5º, inciso V, da Constituição Federal e pelo art. 29 da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67).
Conclui-se que a laicidade do Estado brasileiro é, em uma perspectiva histórico-nacional, ainda muito recente e, por isso, ainda possui cicatrizes que se refletem na forma de racismo religioso. Isso significa dizer que, muito embora o ordenamento jurídico pátrio prime pela garantia da liberdade de crença, as violações à liberdade de crença dos adeptos às religiões afro-brasileiras não representam atitudes discriminatórias individuais ou isoladas, mas que operam com força hegemônica, configurando verdadeira desigualdade social.
De fato, existe uma violência coletiva, simbólica e majoritária que opera contra uma minoria inferiorizada e excluída socialmente, por não corresponder aos ritos e signos dominantes. Entretanto, o Direito Civil dispõe de ferramentas que podem auxiliar na garantia, como é o caso do direito de resposta.
No caso analisado nesta coluna, a concessão dessa medida, somada a imposição de medidas compensatórias exemplifica caminhos para a promoção da equidade religiosa e o combate ao racismo religioso. Ainda há um longo caminho a se percorrer, mas a busca pelo livre exercício do direito à liberdade de crença, em pé de igualdade por todas as pessoas, há de ser tratado com máxima prioridade pelos operadores do direito.