Redes sociais, o futuro de uma ilusão e civilização

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Como se forma uma rede social? Quais seus mecanismos de controle? Nada mais fundamental para os dias de hoje  que formularmos tais questões. Sigmund Freud nos dá uma pista em “O Futuro de uma Ilusão”, onde menciona que: “As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação. Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção”[1].

Primeiramente, podemos pensar nos sentidos e significados que advêm da palavra “rede”. De origem etimológica do latim (“rēte”), além da ideia de conexão, a palavra comunica a ideia de teia e laço.

Mas para pensar em como se constituem os mecanismos de uma rede social na web, poderíamos partir do ponto de como se constitui uma civilização e a cultura de um povo. Quais as possíveis correlações entre estes grupos humanos dentro e fora da Internet?

Apesar de as redes sociais serem somente uma espécie de microcosmo de uma civilização, podemos buscar analogias no processo de formação de uma civilização, para tentar compreender a formação e o  funcionamento de uma rede social, entendendo os poderes que ali operam, a relação entre esses poderes, e que tipo de regulação pode existir nessa sociedade virtual.

Freud, em uma de suas obras seminais, “O Futuro de uma Ilusão”, versa sobre aquilo que seriam as bases de uma civilização, sobre como se dá o processo civilizatório.Civilização humana seria a “expressão que significa tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal”, abrangendo também”todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas” e incluídos nela “todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível”[2].

É evidente que esse conceito de civilização de Freud mereceria algumas considerações, como no caso da relação do homem com a natureza, relação esta que é hoje  mais predatória que nunca.

Mas vamos nos concentrar no terceiro item da definição freudiana, para a consecução de nosso objetivo: A regulação das relações.

Toda sociedade precisa de mecanismos de regulação para existir, isto é, criar regras e leis de modo a fomentarcomportamentos esperados. Segundo Freud, a civilização se ergue a partir da necessária coerção e renúncia aos instintos. Então, contraditória e paradoxalmente, a civilização por um lado seria necessária para levar-nos à satisfação instintual de forma controlada, e por outro lado ela mesma seria o obstáculo que nos impede de chegar à satisfação. Trata-se este do chamado “mal-estar da civilização”[3].

Como poderíamos pensar isso então no campo das redes sociais na internet?

As redes sociais trazem, à primeira vista, um campo infinito de possibilidades para as pessoas se relacionarem e trocarem informações, compartilhando, por exemplo,  detalhes de suas vidas particulares com as pessoas de quem gostam.

À primeira vista, não passa pela cabeça de alguém que olha esse grande organismo de relações através do virtual possa ser deletério. Aparentemente é um campo de atuação que premia aqueles que possam melhor se servir deste meio. Na aparência, então, a autorregulação seria o principal mecanismo para o seu bom funcionamento.

Este seria o conteúdo manifesto[4] da rede. Para “olhos” treinados, no entanto, o conteúdo oculto do que acontece nas redes vem à tona facilmente.

Cada um dos componentes que participam da rede tem suas próprias necessidades e objetivos ao usá-la; cada qual com seus ideais de certo, de belo, cultura, justiça, moralidade, ética etc. Cada um com seus próprios “deuses” implícitos.

No entanto, soma-se a esses uma elite que se apropria de mais este lugar, para utilizá-lo a seu bel prazer, disseminando informações falsas, distorcidas, manipuladoras, a fim de controlar – como sempre aconteceu na civilização humana – o destino de um grande conjunto de habitantes, em prol de um pequeno conjunto de grupos e pessoas poderosas.

Isso, evidentemente, acaba por representar uma ameaça à democracia, o que não é um bom indício de sustentação de uma civilização. Segundo o chanceler de Portugal, Augusto Santos Silva, as redes sociais e as novas mídias ampliam o raio de ação e de socialização de cada sujeito social. Mas estas redes “são especialmente vulneráveis às lógicas e práticas de manipulação por desinformação e tração moralista e emocional”.[5]

Silva afirma ainda que o populismo, aliado à desinformação (entre estas, as “fake news”) nas redes sociais, são riscos funestos ainda muito ignorados, não só para governos e disputas eleitorais, mas também para o campo acadêmico e para o jornalismo, todos pilares da democracia[6].

Sem a presença de um líder formal, algumas pessoas em posições estratégicas podem criar formas de manipular uma grande massa de participantes das redes sociais. Recursos financeiros junto a um marketing invisível continuam sendo uma força, a marca registrada de quem influencia um grande número de pessoas.

Quem assume posições de liderança numa rede social normalmente representa empresas, partidos políticos, conglomerados econômicos, entre outros. Em geral, representantes do poder público e privado. Ou seja, são representantes de um poder instituído há muito tempo, bem antes da própria existência da internet e das redes sociais.

Assim, numa espécie de “laboratório de poder”, a rede social pode constituir um mecanismo de controle silencioso e dominador com uma otimizada capacidade de influenciar os usuários inadvertidos (todos). Michel Foucault, grande filósofo do poder político, quando fala em Panoptismo – o conceito de panóptico foi elaborado por Jeremy Bentham, como um mecanismo de controle de comportamento de prisioneiros –, ilumina bastante aquilo que estamos tentando elaborar aqui.

A rede social funcionaria – às avessas da alardeada liberdade – como uma sutil prisão, onde mesmo aqueles que dizem não estar “funcionando” de acordo com as regras ali vigentes ou que dizem não estar neste “grupo”, estão ainda assim em referência a ela – a rede social.

Diz Foucault: “O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. A máquina de ver é uma espécie de câmara escura em que se espionam os indivíduos; ela se torna um edifício transparente onde o exercício do poder é controlável pela sociedade inteira”.[7]

Reverberando aquilo que ele diz, podemos afirmar que “a visibilidade [que as redes sociais proporcionam] é uma armadilha”,  uma manutenção perversa de um estado de “civilização”, com as ações e comportamentos sendo constantemente vigiados por todos, em um controle de valores, repressões e autocensuras sendo mantido e gerido por todos.

As redes sociais elevaram essa situação à enésima potência nos dias atuais, com alguns de seus componentes representando grupos específicos, que censuram a atividade de outros, denunciando, hostilizando, compartilhando mentiras bem calculadas. Por isso é importante pensar cuidadosamente a regulação das redes sociais, de maneira a promover seus aspectos positivos em detrimento de seus aspectos deletérios, resguardando a democracia e o respeito aos direitos humanos.

[1] FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1997 a [1927].

[2] FREUD, S. (1927b) O futuro de uma ilusão. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[3] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997 b [1929].

[4] Segundo o Vocabulário de Psicanálise Laplanche e Pontalis, conteúdo manifesto designa o sonho antes de ser submetido à investigação analítica, tal como aparece ao sonhante que o relata. Por extensão, fala-se do conteúdo manifesto de qualquer produção verbalizada – desde a fantasia à obra literária – que se pretende interpretar segundo o método analítico. Para nós aqui, teria o sentido dos significados ou verdades que estão ocultos por trás das aparências.

[5] SILVA, Augusto Santos. Será que as redes sociais estão substituindo os intelectuais? Folha de S. Paulo, 2018, fev, 18. Ilustríssima.

[6] Idem.

[7] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014.