Acompanhamos com atenção máxima o julgamento dos embargos de declaração sobre a lei que institucionaliza o piso da enfermagem no Supremo Tribunal Federal (STF). Com todo o respeito às decisões da Justiça, se confirmado o resultado que vincula o piso às 44 horas, conforme o voto de três ministros até o momento, teremos um cenário considerado mais distante do ideal no exercício da profissão.
A pandemia da covid-19 expôs, para o mundo, a realidade dura da maior categoria da Saúde, tantas vezes invisibilizada. Na linha de frente do atendimento, a enfermagem está 24h ao lado dos brasileiros. Nascemos bebês com um profissional do cuidado nos envolvendo, e ele estará presente no derradeiro momento, nos dando conforto e a melhor morte possível.
Dizer que realizar isso é mais cansativo, não admite erros, é o óbvio. Portanto, o número duro das 44 horas semanais trabalhadas, conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), não leva em consideração as necessidades de descanso específicas do profissional de saúde plantonista. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma jornada de 30 horas seria a mais desejável. Tramita nas instâncias legislativas outro projeto de lei nosso a respeito do tema.
Além disso, vincular o piso às 44 horas desconsidera a realidade da maioria dos profissionais da enfermagem no Brasil. As más condições de trabalho da enfermagem são vistas em todo o mundo. Há países em que o mercado de trabalho se encarrega de remunerar com mais justiça o trabalhador da saúde, mas um país que forma profissionais na escala do Brasil — e que, portanto, tem uma massa de trabalhadores imensa — depende de regulação. Repercutiram os relatos de enfermeiros por todo o país recebendo menos de mil reais durante a pandemia. Foi este o espírito que norteou a idealização do piso nacional.
Desde que uma remuneração mínima de nível nacional para a enfermagem foi proposta, como projeto de lei do senador Fabiano Contarato (PT-ES), um caminho longo foi percorrido. Poucos acreditavam, em março de 2020, que seria possível. No entanto, um raro consenso foi construído entre campos ideológicos diversos, em uma época de marcada polarização, para a vitória de nossa tese. Os números que propúnhamos, e que já foram reduzidos e não estavam nos patamares que inicialmente considerávamos ideias, de fato são economicamente viáveis.
No Senado, a lei teve unanimidade dos votos. Na Câmara, 97% dos deputados apoiaram. Diante das evidências disponíveis apresentadas em comissões, depois de vistos inúmeros estudos sobre o impacto financeiro — tanto no setor público como no privado — nenhum representante do povo podia ser contra. Os argumentos de que trata a Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta em 2022 no STF foram devidamente considerados durante o debate exaustivo pelo qual essa ideia teve de atravessar.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostraram que o lucro líquido per capita dos planos de saúde mais que dobrou nos últimos quatro anos analisados, saltando de R$ 75,70, em 2014, para R$ 185,80 em 2018. A receita das operadoras cresceu de R$ 229,9 bilhões, em 2020, para 239,9 bi, em 2021. Ao recorrerem ao STF, os empregadores do bilionário setor privado da saúde não buscam uma garantia de direitos fundamentais, mas recorrer a uma derrota de sua tese no âmbito legislativo. E usam as entidades filantrópicas em busca de justificativas para o que não passa de ganância.
Foi ponderado o ponto de vista dos empregadores, da mesma maneira que também foram acolhidos seus representantes em diversas reuniões durante a tramitação do projeto. Repetindo, suas ideias acabaram derrotadas com a maioria de votos no parlamento. Ao invés de respeitarem a soberania da política, os patrões recorrem à Justiça, utilizando-se do seu acesso ao que seus recursos podem garantir em assessoria jurídica para, na pior das hipóteses para eles, atrasar tanto quanto possível o ônus de arcar com a remuneração justa.
Além do STF, há no Tribunal Superior do Trabalho (TST) um pedido de mediação entre a Confederação Nacional da Saúde (CNSaúde) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS), entre outras entidades representativas, com a justificativa de que se mostrava inviável a construção dos acordos. Ora, uma das ideias do CNSaúde era o parcelamento por até 36 meses os aumentos. Tal proposta foi considerada imprestável pelo próprio TST, que não levou para o crivo dos trabalhadores por entender que não tinha capacidade de atender aos interesses deles. Como se pode acusar os trabalhadores de não negociar se não são razoáveis as propostas apresentadas?
Todos estes recursos são legítimos, fazem parte do estado democrático de direito e não questionamos tais expedientes. Esperamos, isto sim, a sensibilidade dos excelentíssimos ministros na análise das questões, o respeito à vontade popular e ficamos na torcida pela reversão dos resultados, que consideramos desfavoráveis à categoria.
Valorizar a enfermagem é fundamental para todo o setor da saúde. E é também um acerto de contas histórico. É reconhecer como essencial um profissional que está sempre presente, atento, exerce protagonismo e se supera diariamente.