No último dia 23 de novembro, foi publicado o Decreto 11.795, que regulamenta a Lei 14.611/2023 – que dispõe sobre igualdade salarial e critérios remuneratórios entre homens e mulheres. A lei prevê que a garantia de igualdade salarial e os critérios remuneratórios se dariam, por exemplo, por meio de mecanismos de transparência salarial e critérios remuneratórios, fiscalização, canais de denúncia de discriminação salarial, promoção e implementação de programas de diversidade e inclusão, bem como fomento à capacitação e à formação de mulheres para o mercado de trabalho.
Ocorre que a referida lei também determina a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e critérios remuneratórios pelas pessoas jurídicas de direito privado com 100 ou mais empregados, de forma que seja possível fazer comparação objetiva entre salários, remunerações e proporção de ocupação de cargos por mulheres e homens. Os relatórios serão publicados em plataforma digital de acesso público do Poder Executivo federal. Caso não haja tal publicação, as empresas estarão sujeitas à multa de até 3% da folha de salários do empregador, limitada a 100 salários-mínimos, sem prejuízo de outras eventuais sanções.
Portanto, pelo texto da lei, haverá obrigatoriedade de que empresas com mais de 100 empregados disponibilizem, em base de dados pública, informações detalhadas de salários e remunerações, ainda que de forma anonimizada. O Decreto 11.795 especifica as informações do relatório, como valor do salário, do décimo terceiro, de gratificações, de comissões, de horas extras, entre outros. O referido Decreto também determina que o relatório deve ser publicado nos sites das próprias empresas, nas redes sociais ou em instrumentos similares, nos meses de março e setembro.
O que é contraditório é que tais informações de salários e remunerações são consideradas como informações concorrencialmente sensíveis pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), e seu compartilhamento entre concorrentes é sujeito a sanções da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência). Isso é uma realidade não apenas para o Cade, mas também em outras jurisdições, como indicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em seu relatório “Competition in Labour Markets”, de 2020[1]. Segundo tal relatório, a troca de informações sobre salários entre empresas pode ser considerada um ilícito envolvendo colusão tácita, pelo menos, nos Estados Unidos, no Japão e em Hong Kong.
O Cade trata informações concorrencialmente sensíveis envolvendo salários e remunerações tanto no âmbito do controle de estruturas quanto no controle de condutas. No controle de estruturas, o Cade lista expressamente em seu Guia de Gun Jumping[2], de maio de 2015, ou seja, há 8 anos, pelo menos, informações de salários de empregados como exemplo de troca de informação concorrencialmente sensível apta a resultar na prática de consumação prévia de atos de concentração econômica, também conhecida como gun jumping. Nos termos do artigo 88, parágrafo 3º da Lei de Defesa da Concorrência, a multa por gun jumping pode variar de R$ 60 mil a R$ 60 milhões.
No controle de condutas, o Cade instaurou, em 2021, o Processo Administrativo nº 08700.004548/2019-61, envolvendo alegada coordenação e troca de informações concorrencialmente sensíveis entre concorrentes no mercado de trabalho na indústria de health care. O Processo Administrativo foi instaurado, pelo menos, contra 37 pessoas jurídicas, além de pessoas físicas.
Conforme a Nota Técnica de Instauração do supracitado Processo Administrativo, a Superintendência-Geral do Cade investiga alegada troca de experiências e informações sensíveis sobre gestão de pessoas e departamento de Recursos Humanos, envolvendo remuneração e bonificação de empregados. O Processo Administrativo ainda está sob análise da Superintendência-Geral do Cade e não há decisão final, mas indica uma preocupação do Conselho envolvendo mercado de trabalho e concorrência.
No controle de condutas, as sanções previstas na Lei de Defesa da Concorrência incluem multas de 0,1% a 20% do valor do faturamento bruto de empresa, no ramo de atividade empresarial da infração, multas para indivíduos, além de eventuais sanções não pecuniárias para empresas e indivíduos, como proibição de exercer o comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica, pelo prazo de até cinco anos.
Portanto, há contradição entre duas políticas públicas em nível federal no Brasil que podem resultar em sanções para empresas nas esferas concorrencial e trabalhista, a depender da norma a ser adotada pelas empresas, além de permitir que informações concorrencialmente sensíveis passem a se tornar publicamente disponíveis.
Nesse contexto, é importante o diálogo institucional entre autoridades para avaliação das consequências da aplicação da Lei 14.611/2023 no Brasil, notadamente diante da perspectiva concorrencial, para respostas a questionamentos como: devem informações de salários de empregados não mais ser consideradas concorrencialmente sensíveis pelo Cade para empresas com mais de 100 empregados? Caso positivo, como as investigações em curso do Cade de assuntos relacionados serão afetadas? Ainda, qual seria o impacto concorrencial de se considerarem informações de salários como não concorrencialmente sensíveis?
Tal diálogo institucional certamente aumentaria a segurança jurídica e previsibilidade aos administrados no cumprimento da legislação brasileira.
[1] Disponível em: https://www.oecd.org/competition/competition-in-labour-markets-2020.pdf
[2] Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/gun-jumping-versao-final.pdf