Por que tratar da lei aplicável aos contratos internacionais no Código Civil?

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A influência da vontade das partes na determinação das normas aplicadas aos contratos internacionais, amplamente reconhecida na imensa maioria dos sistemas jurídicos estrangeiros, é tratada de forma lacunosa no Direito brasileiro, de modo a gerar desnecessárias incerteza, insegurança e imprevisibilidade. Os trabalhos da Comissão do Senado para a reforma do Código Civil, porém, abre importante janela de oportunidade para resolver esse problema de modo equilibrado e tecnicamente consistente.

Para começar, é importante localizar tecnicamente a questão da determinação voluntária do Direito aplicável aos contratos. Em outros termos: ela pertence ao Direito Internacional Privado ou ao Direito Civil?

A hipótese favorável ao primeiro inclui o tema na problemática da determinação do Direito aplicável às relações privadas pluriconectadas, ou seja, vinculadas materialmente a mais de um ordenamento jurídico. A vontade das partes, expressa ou tácita, seria um possível elemento de conexão de norma de conflito e, como tal, vincularia a relação contratual a um Direito, eventualmente estrangeiro.

A outra, indicativa da pertinência ao Direito Civil, seria a da discussão dos limites e efeitos da autonomia privada. Nesse sentido, cabe a esse campo a discussão da validade e eficácia dos pactos sobre escolha de lei, inclusive para o reconhecimento da eficácia da vontade tácita. Aí se pode, também, estudar e esclarecer o alcance da autonomia, sobretudo no sentido de ir além das normas meramente dispositivas e alcançar aquelas cogentes que não se caracterizem como imperativas – também compreendidas como de aplicação imediata – ou que afetem a ordem pública.

A resposta, portanto, é no sentido de que um bom tratamento do tema se desenvolve, coordenadamente, em ambos os campos. Em outras palavras, por um lado a regulação no Código Civil se debruçaria sobre a autonomia privada em termos de determinações formais sobre a validade e o alcance do pacto sobre lei aplicável, bem como dos limites de sua eficácia. Por outro lado, complementarmente, a Lei de Direito Internacional Privado trataria da fixação dos elementos de conexão primários e subsidiários, bem como dos demais aspectos técnicos da disciplina, como qualificação, reenvio e modo de aplicação do Direito estrangeiro.

O quadro atual, porém, está longe de representar um acoplamento harmônico e claro entre os aspectos de ambas as disciplinas.

A situação peculiarmente confusa do Direito pátrio se inaugurou há pouco mais de 80 anos, quando a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de 1942, substituiu a introdução do Código de 1916. Em matéria de obrigações e contratos passou a viger seu Artigo 9º, instituidor da conexão pela lei do lugar de celebração do contrato e, subsidiariamente, pela residência do proponente. Contanto, afastou-se do texto a expressão “salvo disposição em contrário”, presente no caput do Artigo 13 do defunto instrumento vestibular, sem que o corpo do Código passasse a regular expressamente a autonomia privada para a determinação do Direito aplicável.

Havia sido plantada a semente da confusão. Desde então, da doutrina e jurisprudência brasileiras, jamais deixaram de brotar, lado a lado, as mais diversas variedades de compreensões: desde aquelas negadoras da validade de cláusulas de escolha de lei aplicável, até as defensoras de uma autonomia da vontade ilimitada, equiparada a fenômeno natural. No amplo campo estendido pelas manobras integrativas e interpretativas floresce o cerceamento ao útil e razoável exercício da liberdade e frutifica a incerteza e imprevisibilidade, ervas daninhas de qualquer sistema jurídico.

Em 1996, com a promulgação da Lei da Arbitragem, o cenário se transformou, ainda que parcialmente. O Artigo 2º estabeleceu com clareza a possibilidade de escolha da lei aplicável pelas partes, bem como abriu as portas para o uso de princípios gerais de direito, usos e costumes e regras internacionais do comércio. Além disso, as regras de arbitragem das principais instituições internacionais e brasileiras usam atribuir aos árbitros o dever de, respeitado o consenso entre as partes, identificar o Direito mais adequado a ser aplicado ao caso, o que normalmente recai sobre a escolha presumida ou na aplicação do princípio da proximidade.

Essa solução legal foi bastante importante, fundamental até, para o campo arbitral, pois possibilitou uma fina sintonia com as melhores práticas internacionais. Impôs, não obstante, uma divisão entre as questões levadas à arbitragem – regidas pela lei eleita pelos litigantes ou identificada como mais adequada pelos árbitros – e aquelas levadas os juízes – sujeitas a um regime excessivamente restritivo ou, ao menos, pouco claro.

Do ponto de vista hermenêutico, a tensão entre ambas essas normas pode ser resolvida de dois modos diametralmente opostos: (1) a afirmação de plena harmonia, interpretando extensivamente a regra do Artigo 9º da LINDB para se adequar à ampla liberdade garantida no Artigo 2º da Lei da Arbitragem e (2) a afirmação de que a norma para o campo arbitral foi adotada para se afastar do regime restritivo da LINDB, reforçando as linhas interpretativas contrárias à possibilidade de escolha da lei. Entre tais extremos há, evidentemente, uma plêiade de posições intermediárias.

A melhor maneira de evitar tais ambiguidades, incertezas e insegurança seria a abordagem da questão em duas frentes: (1) a consagração, no Código Civil, da autonomia privada suficiente para regular os contratos internacionais até o ponto de não ferirem as normas imperativas e a ordem pública do foro associada à (2) inclusão de um regime detalhado em Lei Geral de Direito Internacional Privado capaz de consagrar não apenas a autonomia das partes como elemento conectivo, além de substituir as más regras da atual LINDB por critérios baseados na proximidade.

Enquanto essa possibilidade ainda se encontra no mundo dos desejos, há uma tendência jurisprudencial despontando no horizonte. O mais destacado acordão é, sem dúvida, o prolatado pelo STJ no Resp 1.280.218 MG, onde se afirma inequivocamente a possibilidade de as partes escolherem expressamente o Direito aplicável aos contratos. Porém, até porque a leitura gramatical e sistemática das normas o impõem, as incertezas resistem.

Nesse sentido, para ficar nas mais simples, é possível mencionar ao menos três pontos. Em primeiro lugar, nem o Código Civil, nem a LINDB e nem a Lei da Arbitragem têm uma definição de contratos internacionais, deixando a possibilidade de alcançar os contratos estritamente internos em aberto, bem como bastante borrada a linha que os separa dos internacionais.

Por outro lado, tampouco fica claro o regime da autonomia privada tácita, ou seja, que não esteja consubstanciada em cláusula de escolha de lei aplicável ou, ainda, para eventuais casos em que tal cláusula seja invalidada. É possível, na alteração do Código Civil, deixar claro o emprego dessa modalidade de vontade, sempre que claramente derivável do contrato. Isso colocaria o Direito brasileiro bastante ajustado aos padrões internacionais.

Em terceiro lugar, é impossível asseverar de plano, com base no acórdão mencionado, quais os limites do Direito estrangeiro eventualmente aplicável. Em particular, cabe discutir se apenas seriam afastadas as normas dispositivas da lei da celebração do contrato, ou se com estas também seriam afastadas aquelas que, embora cogentes, não afetam o núcleo duro das normas imperativas – imediatamente aplicáveis – e a ordem pública de Direito Internacional Privado. Isso também pode ser abordado tanto no Código Civil, quanto em uma Lei Geral de Direito Internacional Privado.

Para além desses pontos, tecnicamente lacunosos, resta um problema axiológico. Ou seja, se põe a questão de saber até que ponto o Judiciário nacional estará disposto a aceitar a escolha pelas partes. No campo de operações privadas entre partes de poder equiparável e, sobretudo nas de caráter internacional, espera-se que a intenção de aceitar a escolha seja confirmada. Mas na medida em que os contratos se aproximem de relações de trabalho ou consumo envolvendo predominantemente pessoas localizadas no Brasil, é provável que o ânimo de aceitar a escolha diminua e desapareça. 

Nesse sentido, a melhor solução é garantir as normas imperativas e a ordem pública internacional do foro. Isso, também, funciona muito melhor se feito, conjuntamente, no Código Civil – enquanto limitação da autonomia privada – e em Lei Geral de Direito Internacional Privado, com a regulação das exceções à aplicação de Direito estrangeiro.

De fato, apenas uma alteração na legislação brasileira seria capaz de dar maior coerência, clareza e certeza à questão do Direito a ser aplicado aos contratos internacionais. Por isso é tão importante aproveitar a janela de oportunidade aberta pela revisão do Código Civil.

A melhor solução para os negócios internacionais é, sem dúvida, a do estabelecimento expresso e claro de a indicação da lei aplicável ao contrato decorrer da livre vontade dos contratantes. Afinada com os mais recentes instrumentos internacionais e com os sistemas jurídicos dos principais parceiros econômicos do Brasil, a escolha expressa e tácita do Direito aplicável aos contratos tende a facilitar as operações econômicas, acertando o ritmo de uma regulação mais clara, eficiente e uniforme.