Durante anos, a Administração Pública brasileira considerou inaptos para tomar posse em cargo público candidatos que, embora aprovados em todas as fases do concurso, tinham sido acometidos por uma doença grave. Alguns deles com diagnóstico de hepatite B[1], HIV ou lupus, sem qualquer sintoma, outros pelo prognóstico da expectativa de vida, ainda que concluído o tratamento.
Essa não é a história de um passado remoto. Muito ao contrário, é deste ano de 2023: no Manual de Protocolos Técnicos GOGESS da cidade de São Paulo consta como parâmetro de avaliação da aptidão do candidato diagnosticado com câncer: “será avaliada caso a caso, a critério médico pericial, levando em consideração os parâmetros mencionados bem como o prognóstico evolutivo e critérios de cura para cada neoplasia”.
Para não deixar dúvidas quanto à pretensão de estimar o tempo de vida do candidato, o manual indica como parâmetro o seguinte meio diagnóstico das neoplasias malignas: “para fins de ingresso no Serviço Público Municipal serão considerados como portadores de Neoplasia Maligna os candidatos durante os 05 (cinco) primeiros anos de acompanhamento clínico ou a partir da data do diagnóstico”.
É isso mesmo. Até a última quinta-feira (30), entidades públicas mediam expectativa de vida para definir se um candidato estaria ou não apto para ingressar no serviço público. Critério abstrato, arbitrário, preconceituoso e desumano. Finalmente, deixamos essa desumanidade no passado.
O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Recurso Extraordinário 886.131, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.015) e definiu como tese que é inconstitucional a vedação à posse em cargo público de candidata(o) aprovada(o) que, embora tenha sido acometida por doença grave, não apresenta sintomas incapacitantes nem possui restrição relevante que impeça o exercício da função pretendida.
No caso que levou o tema ao STF, algumas questões merecem registro. Primeiro, o fato de que a servidora foi impedida de tomar posse por ter tratado um câncer de mama menos de cinco anos antes, segundo manual que somente restringia acesso às mulheres por neoplasias ginecológicas. Segundo, a parte foi aprovada para o cargo de oficial judiciário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ou seja, foi o próprio tribunal quem negou a posse administrativamente e, depois, judicialmente. Por fim, o estado de Minas Gerais interpôs recurso da sentença de procedência e continuou contestando as razões da recorrente[2] com fundamento no laudo médico segundo o qual “a expectativa de vida laborativa da candidata será baixa”, fato observado pela ministra Cármen Lúcia no julgamento.
A resistência dessa orientação nos concursos públicos chama ainda mais a atenção pelo fato de que o STF já vinha reconhecendo a repercussão geral em casos semelhantes de possíveis vedações arbitrárias ao acesso a cargos públicos. Assim, por exemplo, a corte submeteu ao plenário o exame de questões como:
a existência ou não do direito de gestantes à remarcação de teste de aptidão física sem previsão editalícia (RE 1.058.333 RG, rel. min. Luiz Fux);
a validade da restrição a candidatos que respondem a processo criminal (RE 560.900 RG, rel. min. Joaquim Barbosa);
a legitimidade do impedimento do provimento de cargo, emprego ou função pública decorrente da existência de tatuagem no corpo do candidato (RE 898.450 RG, rel. min. Luiz Fux);
a constitucionalidade da limitação de idade fixada em edital (ARE 678.112 RG, rel. min. Luiz Fux).
Ademais, segundo a jurisprudência do STF, os requisitos que restrinjam o acesso a cargos públicos apenas se legitimam quando em conformidade com o princípio da legalidade e estritamente relacionados à natureza e às atribuições inerentes ao cargo público a ser provido (RE 598.969 AgR, rel. min. Ayres Britto).
Não seriam necessários tantos precedentes para se concluir que o trabalho dignifica e que medir o valor do trabalho pela expectativa de vida – ainda que fosse mensurável – impacta a saúde mental de qualquer paciente acometido por doença grave. Não fosse este um pressuposto básico resguardado pela dignidade, a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (promulgada pelo Decreto 62.150 de 1968), e o artigo 1º da Lei 9.029/1995, que teve sua redação alterada pela Lei 13.146/2015, proíbem expressamente qualquer prática discriminatória e limitativa de acesso ao trabalho.
De todo modo, pode-se concluir, com base nesses precedentes, que a restrição de acesso aos cargos públicos encontra barreiras nos seguintes requisitos que já vinham impostos pela jurisprudência da Suprema Corte:
Exigência de previsão legal;
Motivação individual dos candidatos em seus casos concretos;
Identificação individual, na motivação, das atribuições individuais do cargo em disputa com os óbices da patologia apontada;
Vedação de desproporcionalidade e discriminação.
No precedente que forma a tese de repercussão geral foi necessário adicionar mais um item nessa lista de objeções: impedir que a administração pública estime, com fundamento em critérios estatísticos, o tempo de vida dos candidatos. E assim assegurar que somente sintomas incapacitantes ou restrição relevante que impeça o exercício da função pretendida possam constituir óbices para a posse.
Permitir a restrição de ingresso em concurso com base na expectativa de vida, seria medir a dignidade pela estatística. E não há estatística desfavorável que se sobreponha à dignidade da pessoa e do trabalho, assim como ao direito de viver exercendo nossa humanidade que é repleta de diferenças, incluindo os riscos.
Não é dado ao Estado buscar meios de construir uma blindagem cruel para os riscos que são da vida, reduzindo o que temos de mais humano: nossa solidariedade [3].
[1] RMS 28.105 – RO
[2] O manual de perícias do estado de Minas Gerais que continha norma semelhante à do município de São Paulo foi modificado, fato noticiado antes do julgamento com pedido de perda de objeto.
[3] Não sem razão, elencado entre os primeiros objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, I da CR/88).