Em 1995, o jornal Diário de Pernambuco publicou uma entrevista com Wandenkolk Wanderley, ex-delegado de polícia que trabalhara para o aparato de repressão da ditadura militar, na qual ele afirmava que o então deputado Ricardo Zarattini Filho havia participado do atentado terrorista ao Aeroporto de Guararapes, no distante ano de 1966, deixando duas pessoas mortas e outras 14 feridas.
Zarattini ajuizou uma ação de reparação de danos contra a empresa editora do jornal, pedindo indenização de R$ 700 mil, ao argumento de que o veículo de imprensa publicara uma informação falsa, sem checar a veracidade dos fatos alegados pelo entrevistado. Depois de uma lenta tramitação em todas as instâncias do Poder Judiciário, o caso foi finalmente julgado pelo STF, que estabeleceu a seguinte tese de Repercussão Geral:
“1 – A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia. Admite-se a possibilidade de posterior análise e responsabilização, inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais. Isso porque os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões externas.
2 – Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.
A primeira crítica que faço à essa decisão é de natureza formal: parece-me que o STF escolheu um “caso ruim” de um passado remoto, para fixar uma tese de Repercussão Geral a ser projetada no presente e futuro. O julgamento versa sobre litígio ocorrido quando a imprensa escrita e impressa ainda era dominante, há quase 30 anos, período em que a internet apenas engatinhava; segundo, porque a decisão somente tem lógica se aplicada aos meios de comunicação impressos.
É de se perguntar como seria possível para um site noticioso na internet, que estampa suas publicações “à quente”, quase em tempo real em seu domínio, checar detidamente declarações de seus entrevistados, premido pela necessidade de concorrer com os demais órgãos de imprensa que disputam o “furo” de divulgar informação relevante a partir de declaração de terceiro. Ainda que isso fosse possível, como checar a veracidade de fatos complexos, muitas vezes ocorridos em um passado distante (conforme o caso dos autos), quando testemunhos e documentos são de difícil acesso ou, então, quando esses fatos estão sendo disputados no próprio Poder Judiciário?
Ou, ainda, como aplicar esse precedente a entrevistas ao vivo promovidas por canais de TV ou rádio, em que pode ser impossível a checagem imediata de um fato controverso declarado por entrevistado? Note-se que a “tese” do Tema 995 não faz qualquer ressalva a essa circunstância, embora alguns ministros a tenham observado em seus votos individuais (vide o voto do ministro Barroso, que embora a tenha assinalado, não a considerou para os fins de fixação da tese).
A tese fixada pelo STF no RE 1.075.412 padece do mesmo problema que vemos em tantas outras decisões da corte em sua pretensão ativista de “normatizar casos futuros”: abrangência excessiva. A corte escolhe um caso peculiar como paradigma – muitas vezes inadequado exatamente em razão de sua peculiaridade – e fixa tese abrangente que poderá ser aplicada a casos completamente distintos (veja-se, por exemplo, o verdadeiro barbarismo que o STF cometeu ao elastecer infinitamente o precedente sobre terceirização no Tema 725).
Costumo dizer que essa prática do STF lembra a pesca do camarão, que se dá com redes tecidas para capturar o pequeno crustáceo, mas que acabam arrastando e matando indevidamente outras criaturas marinhas. O resultado é que o STF acaba de dar essa rede de pesca de camarão na mão de todo e qualquer juiz em todo território nacional. Quem não for camarão, estará seriamente ameaçado…
Já quanto ao seu conteúdo, o precedente é igualmente infeliz. O STF parece ter querido se orientar pelo precedente da Suprema Corte dos EUA conhecido como New York Times Co. v. Sullivan (1964), ao fixar a responsabilização pela “falta de dever de cuidado na verificação dos fatos” (reckless disregard), o qual, aliás, foi citado expressamente no voto do ministro Barroso. Ocorre que esse precedente estabelece, de forma antecedente, um ônus processual àquele que requer as indenizações, atribuindo ao requerente a tarefa de demonstrar cabalmente que o órgão de imprensa tinha conhecimento de que o fato que lhe foi imputado era falso ou foi totalmente negligente na sua apuração.
É justamente essa inversão do ônus processual que torna praticamente impossível nos EUA as ações de reparação de danos por reportagens publicadas na imprensa. Observe-se, a propósito, que as recentes e bem sucedidas ações ajuizadas pelos fabricantes de urnas eletrônicas nos EUA contra a Fox News, que as denunciara como suscetíveis de fraude, só foram possíveis porque os requerentes lograram obter e-mails internos da empresa de mídia em que os editores admitiam que as acusações eram falsas e mesmo assim autorizaram as matérias, exaustivamente repetidas na TV. Como acontece frequentemente, o STF mais uma vez fez importação parcial e desvirtuada de precedente estrangeiro, ignorando o contexto histórico, político e jurisprudencial em que ele originalmente se deu.
Em síntese, a decisão do STF sobre liberdade de expressão é mais um caso que demonstra o ativismo desmesurado da corte no contexto da desastrada importação da cultura de precedentes da Common Law que aqui vem ocorrendo desde a infeliz aprovação da Emenda Constitucional 45. Vamos de mal a pior nesse caminho.