Há várias semanas a agenda nacional vem sendo ocupada com a discussão sobre a “meta zero”, ou “déficit zero”, com inusitadas discordâncias entre o ministro da Fazenda e o presidente da República sobre o tema[1].
O que pode parecer um detalhe da legislação no âmbito do Direito Financeiro, já se transformou, há décadas, em uma das mais importantes decisões governamentais a serem tomadas, e por vezes, como se vê agora, torna-se o centro das atenções e preocupações.
E no que consiste exatamente a decisão sobre a chamada “meta fiscal”[2]?
A Constituição, ao dispor sobre os orçamentos públicos e o planejamento orçamentário da administração pública, atribuiu à lei de diretrizes orçamentárias, uma das que integram a tríade de leis que regulam as finanças públicas dos entes federados – composto pelo Plano Plurianual (PPA), pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e pelo orçamento, a Lei Orçamentária Anual (LOA) –, a função de estabelecer as diretrizes de política fiscal e respectivas metas, em consonância com a trajetória sustentável da dívida pública, orientando a elaboração da lei orçamentária anual (CF, art. 165, § 2º). E diz mais, nos §§ 10 e 11: subordina o cumprimento dos programas orçamentários ao cumprimento das respectivas metas. Essas metas são estabelecidas anualmente na LDO, em anexo com a previsão de agregados fiscais para o período trienal (o exercício a que se refere e os dois subsequentes).
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – Lei Complementar 101/2000 – explicita, em seu art. 4º, várias das funções da LDO, estando entre elas dispor sobre o equilíbrio entre receitas e despesas, contendo Anexo de Metas Fiscais que deverá estabelecer metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes (art. 4º, § 1º), que deverá detalhar o cumprimento das metas do ano anterior, explicitar metodologia de cálculo e justificar os resultados pretendidos e o alinhamento com o planejamento e objetivos da política econômica (art. 4º, § 2º).
A compreensão do alcance desse dispositivo é fundamental para se que tenha noção da dimensão de sua importância.
O valor da meta de resultado primário fixada na LDO federal vai conduzir a execução orçamentária – e, portanto, os gastos públicos – no exercício financeiro a que se referir, definindo o que se pretende atingir em termos de resultado fiscal.
Um resultado fiscal que pode ser superavitário, neutro ou deficitário.
Em linguagem técnica mais simples, o resultado nominal consiste na diferença entre receitas e despesas totais do exercício financeiro, sendo o resultado primário essa diferença apurada entre as receitas e despesas primárias no exercício, excluídos os valores referentes às despesas financeiras.
Os resultados primários positivos constituem os superávits primários, e contribuem para a redução da dívida pública, ao passo que, sendo negativo – déficit primário – o que se tem é aumento da dívida, ante a necessidade de financiamento para os gastos primários que ultrapassam as receitas primárias.
Trata-se, por conseguinte, de uma decisão que impacta fortemente a saúde financeira do país, uma vez que deixa clara a capacidade de compatibilizar as despesas públicas primárias com as respectivas receitas primárias, e, portanto, o equilíbrio das contas públicas e a sustentabilidade fiscal.
Abro um parêntese para chamar a atenção sobre tema cuja relevância não costuma ser notada. A dívida pública é ponto central quando se trata de sustentabilidade fiscal. O momento oportuno, e principal instrumento jurídico para tomar as decisões sobre a forma de conduzir sua gestão, é justamente o de fixação das metas na LDO[3]. Poucas vezes, como se vê neste momento, a discussão se torna ampla e pública.
Não obstante estejamos nos referindo à LDO federal, e, portanto, ao orçamento e às finanças da administração pública federal, a sua grandeza e impacto em todos os demais entes federados do país é total, sendo o governo federal o verdadeiro condutor e principal responsável pela saúde financeira de todo o país.
A preocupação com o equilíbrio das contas públicas e a sustentabilidade financeira do país é antiga, e foi intensificada recentemente com novas alterações constitucionais sobre o tema. A emenda constitucional 109/2021 inseriu o inciso VIII no art. 163 da Constituição, estabelecendo que a lei complementar sobre finanças públicas deverá dispor sobre a sustentabilidade da dívida e seus desdobramentos.
Mas o tema não é novo. A Constituição de 1967 dispunha expressamente sobre a questão em seu artigo 66, ao prever que “o montante da despesa autorizada em cada exercício financeiro não poderá ser superior ao total das receitas estimadas para o mesmo período”, e, se “no curso do exercício financeiro a execução orçamentária demonstrar a probabilidade de deficit superior a dez por cento do total da receita estimada, o Poder Executivo deverá propor ao Poder Legislativo as medidas necessárias para restabelecer o equilíbrio orçamentário”.
A Constituição de 1988 não foi tão explícita, mas tinha desde o início vários dispositivos voltados a prestigiar o equilíbrio das contas públicas, como a “regra de ouro” (art. 167, III: é vedada a “realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital”), além de muitos outros (no mesmo art. 167, incisos II, V, VII, VIII e § 6º, para enumerar os principais).
Não destoa a legislação complementar, tendo a Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, elencado como um dos pilares da gestão fiscal responsável, logo em seu art. 1º, § 1º, o equilíbrio das contas públicas, de modo que a recente emenda constitucional 109 veio acrescentar status constitucional ao equilíbrio fiscal e sustentabilidade financeira como princípios que regem a condução de nossas finanças públicas, sendo as leis de diretrizes orçamentárias, com destaque para a federal, instrumentos importantes para alicerçar essa estrutura normativa que dá respaldo à responsabilidade na gestão fiscal.[4]
A emenda constitucional 126/2022, seguindo essa linha, determinou que fosse encaminhado ao Congresso Nacional projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico e à regra de ouro. Proposto o PLP 93/2023, veio a ser recentemente aprovado, materializando-se na Lei Complementar 200/2023, alcunhada de “novo arcabouço fiscal”, cuja finalidade é justamente instituir “regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico”.
Em seu capítulo II, referida lei, em consonância com a legislação vigente, reafirma a função da LDO de estabelecer “as diretrizes de política fiscal e as respectivas metas anuais de resultado primário do Governo Central, para o exercício a que se referir e para os 3 (três) seguintes, compatíveis com a trajetória sustentável da dívida pública”, delimitando o conceito de sustentabilidade da dívida pública, ao considerar expressamente “compatível com a sustentabilidade da dívida pública o estabelecimento de metas de resultados primários, nos termos das leis de diretrizes orçamentárias, até a estabilização da relação entre a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e o Produto Interno Bruto (PIB)”, conforme o Anexo de Metas Fiscais da LDO, condicionando a “elaboração e a aprovação do projeto de lei orçamentária anual, bem como a execução da respectiva lei, (que) deverão ser compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida na lei de diretrizes orçamentárias”.
Há atualmente, portanto, um robusto e claro regime jurídico que determina a observância de responsabilidade na gestão fiscal, com equilíbrio nas contas públicas e endividamento público em níveis compatíveis com a sustentabilidade financeira do país.
Fatos e normas que, convenhamos, como já exposto, não são novidade, apenas renovam-se com ares de maior rigor e seriedade, mas continuam a exigir uma atuação concreta que, de fato, permita aferir a efetiva observância das regras vigentes e dar confiabilidade ao sistema de planejamento e gestão das finanças públicas. Ou seja, nesse aspecto, vê-se ser necessário “levar o Direito Financeiro a sério”, como já exaustivamente temos defendido.
Não se pode deixar de reparar a intempestividade de estar sendo discutida a questão nesse momento, uma vez que a LDO da União tem seu prazo para aprovação fixado para o final do mês de junho (Constituição, ADCT, art. 35, § 2º, II), e estamos no final de novembro – já são longos e inaceitáveis cinco meses de atraso! Um fato que, por si só, já causa prejuízo à credibilidade da referida decisão e normas que a materializam. O que se soma às declarações divergentes, imprecisas e controversas das autoridades governamentais sobre o tema, que se alternam e modificam a cada dia, gerando forte insegurança na sociedade e em todos os atores envolvidos, prejudicando o desenvolvimento do país, que fica em compasso de espera de uma definição e demonstração de respeitabilidade da decisão tomada, sem o que não se arriscam a investir e dar continuidade a seus projetos.
Agrava a situação o fato de que, após a publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, seguiram-se anos de superávit primário, indicando equilíbrio das contas públicas, o que só veio a se alterar em meados da década de 2010, quando começaram a aparecer os primeiros déficits primários, oficialmente assumidos na fixação das metas da LDO desde então. Sem contar as frequentes alterações nas metas fixadas, também causando grande prejuízo à sua credibilidade.[5]
O projeto de LDO em andamento, cuja discussão está para se encerrar com injustificável atraso, estabelece a meta de resultado primário zero, com superávit primário para os dois anos seguintes. Porém, está parecendo difícil ser mantido, pelo que se divulga na mídia, com forte propensão a já oficializar um resultado primário negativo (vide nota 1 desse texto).[6]
É curioso, e um tanto lamentável, que se considere “ambiciosa” a “meta zero”[7]. Manter o controle das contas públicas, gastando apenas o que se arrecada, é o mínimo que se espera de qualquer gestor público. Aliás, de qualquer gestor, público ou privado, ou de qualquer pessoa. A Constituição, a Lei de Responsabilidade Fiscal, todo o ordenamento jurídico vigente, como se pode constatar, é claro, inequívoco e rigoroso ao determinar a responsabilidade na gestão fiscal. Somente o desleixo e desconsideração das normas vigentes durante décadas permitiram chegar ao ponto de considerar “ambiciosa”, e por vezes até “inatingível”, a “meta” de cumprir a legislação. E que vem ainda acompanhada de desdém do Presidente da República (“o mercado é ganancioso”[8]). É por essas e outras que “levar o Direito Financeiro a sério” passa a ser também uma luta para atingir essa meta, que tem se tornando cada dia mais distante e difícil de ser alcançada. Mas desistir não é uma opção. A luta continua e não pode parar!
[1] Governo discute mudança da meta de 2024 para déficit de 0,5% (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/10/governo-discute-mudanca-da-meta-de-2024-para-deficit-de-05.shtml), entre outras inúmeras referências na mídia.
[2] Que, para ser mais preciso e adequado à legislação vigente, em especial o “novo arcabouço fiscal” (LC 200/2023) deve ser referido como “resultado primário”.
[3] Falei sobre o tema no texto “Decisões financeiras fundamentais são tomadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias”, que integra o livro CONTI, José Mauricio. Levando o Direito Financeiro a sério – a luta continua (3ª edição, Blucher, 2019, pp. 155-160), cuja versão gratuita pode ser obtida em https://www.blucher.com.br/levando-o-direito-financeiro-a-serio_9788580394023.
[4] Sobre esse assunto, vejam as colunas publicadas neste mesmo espaço intituladas “Novo ‘arcabouço’ e expectativas que não seja ‘calabouço’ da gestão fiscal responsável” (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/novo-arcabouco-e-expectativas-que-nao-seja-calabouco-da-gestao-fiscal-responsavel-04052023) e “PEC Emergencial acende uma esperança pela sustentabilidade fiscal” (Esta já integra o livro CONTI, José Mauricio. A luta pelo Direito Financeiro. São Paulo: Blucher, 2022, pp. 215-219, cuja versão eletrônica gratuita pode ser obtida em https://www.blucher.com.br/a-luta-pelo-direito-financeiro).
[5] Meta fiscal foi alterada em 14 dos 23 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/11/meta-fiscal-foi-alterada-em-14-dos-23-anos-da-lei-de-responsabilidade-fiscal.shtml).
[6] “Art. 2º A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2024 e a execução da respectiva Lei deverão ser compatíveis com a meta de resultado primário de R$ 0,00 (zero real) para os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, conforme demonstrado no Anexo de Metas Fiscais constante do Anexo IV a esta Lei.” (Projeto de LDO para 2024, art. 2º) e Anexo IV – Metas Fiscais, p. 14.
[7] A equipe econômica tem uma meta ambiciosa para o ano que vem: zerar o déficit primário das contas públicas. Ou seja: fazer com que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) consiga gastar, descontando o que paga com os juros da dívida, o equivalente ao arrecadado (Em busca do déficit zero: o que o governo pode fazer para acabar com o rombo nas contas públicas – Estadão, 18.9.2023 – Em busca do déficit zero: o que o governo pode fazer para acabar com o rombo nas contas públicas – Estadão (estadao.com.br).
[8] Lula admite quebrar meta de déficit zero e enfraquece discurso de Haddad (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/10/28/lula-admite-quebrar-meta-de-deficit-zero-e-enfraquece-discurso-de-haddad.htm?cmpid=copiaecola)