Repensando o tamanho do escudo

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Olá, caro leitor!

Para a coluna deste mês de novembro, traremos ao debate um dos temas processuais trabalhistas mais comentados nos últimos tempos, notadamente após o julgamento do Recurso Extraordinário 1.387.795-MG, que deverá ser o precedente vinculante para o Tema 1.232 da lista de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (STF). O Tema 1.232 discute a “[p]ossibilidade de inclusão no polo passivo da lide, na fase de execução trabalhista, de empresa integrante de grupo econômico que não participou do processo de conhecimento”. A repercussão geral foi reconhecida  e todas as execuções trabalhistas que versassem sobre a matéria foram suspensos, com fundamento no art. 1.035, §5º, do CPC, em 25/3/2023, por decisão monocrática do ministro Dias Toffoli (relator).

Feitas inúmeras sustentações orais, em razão da admissão de vários “amici curiae” (notadamente confederações patronais e obreiras), o julgamento virtual teve início em 3/11/2023; e, na sequência, o ministro Dias Toffoli apresentou a sua proposta de tese para o tema, com o seguinte conteúdo: “É permitida a inclusão, no polo passivo da execução trabalhista, de pessoa jurídica pertencente ao mesmo grupo econômico (art. 2º, §§ 2º e 3º, da CLT) e que não participou da fase de conhecimento, desde que o redirecionamento seja precedido da instauração de incidente de desconsideração da pessoa jurídica, nos termos do art. 133 a 137 do CPC, com as modificações do art. 855-A da CLT. Aplica-se tal procedimento mesmo aos redirecionamentos operados antes da Reforma Trabalhista de 2017”. Subsequentemente, houve um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, que ainda se debruça sobre o caso (v. ata de julgamento publicada no DJe de 21/11/2023).

Vale lembrar que, de acordo com a jurisprudência dominante do STF, tão logo terminado o julgamento, os efeitos vinculantes do precedente serão imediatos, mercê da sua publicidade (v., e.g., quanto à ADI 4.424 – sobre a Lei Maria da Penha –, a RCL 2.576, da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso), independentemente da publicação do acórdão ou do julgamento de eventuais embargos declaratórios.

Considerando-se, porém, o que está propondo o relator, o que já se pode inferir e debater?

Vejamos.

Sobrestar o quê?

O primeiro ponto importante diz respeito à suspensão determinada em 25/3/2023, como base no art. 1.035, §5º, do CPC: quais processos, exatamente, estariam com tramitação suspensa? Que trâmites estão abarcados pela expressão “execução trabalhista”?

A resposta não é óbvia como poderia parecer.

Os mais “puristas” afirmarão que o sobrestamento tanto alcança processos que tramitam a partir da fase do art. 880 da CLT como, antes dela, todos os processos em fase de cumprimento de sentença; e, mais até, inclusive aqueles que, nessas fases, estejam em debate recursal (agravos de petição, recursos de revista em agravos de petição etc.). E o que dizer, por exemplo, dos mandados de segurança impetrados contra atos judiciais proferidos em fase de cumprimento de sentença, ou dos recursos ordinários que se interpuserem para discutir as respectivas decisões?

A rigor, essa matéria só virá a ser plenamente esclarecida – se for – com o julgamento dos embargos declaratórios. Até lá, porém, há que decidir.

De nossa parte, entendemos que a própria decisão de 25 de maio de 2023, ao reportar a regra do art. 513, §5º, do CPC (a tratar da fase de cumprimento de sentença, que se processa perante o juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição – v. CPC, art. 516, II), não diz respeito à fase recursal. Assim, a suspensão alcança os processos que tramitam em segundo grau apenas excepcionalmente, nas causas de sua competência originária (CPC, art. 516, II). Além disso:

(a) a decisão do ministro Dias Toffoli reporta claramente uma preocupação com os atos de constrição de patrimônio – na linha, aliás, do que houvera proposto, em seu parecer, o DD. Procurador-Geral da República –, que tampouco se operam, em via de regra, no segundo grau de jurisdição, e tanto menos em fase recursal;
(b) em geral, os recursos aviados estarão mesmo a atacar os atos de constrição patrimonial já consumados, de modo que a paralisação do processo terminaria por prejudicar precisamente quem foi o principal destinatário das preocupações vertidas na multicitada decisão de 25/3/2023 (a saber, […] empresa alheia ao processo de conhecimento que, a despeito de supostamente integrar grupo econômico, não tenha tido a oportunidade de ao menos se manifestar, previamente, acerca dos requisitos, específicos e precisos, que indicam compor (ou não) grupo econômico trabalhista […]” – g.n.); e, por fim,
(c) consoante a mais clássica doutrina processualista, “execução” – expressão utilizada pelo ministro Dias Toffoli – corresponde à “atuação prática, da parte dos órgãos jurisdicionais, de uma vontade concreta da lei que garante a alguém um bem da vida e que resulta de uma verificação; e conhece-se por execução o completo dos atos coordenados a esse objetivo(g.n.).[1] Ora, os recursos não compõem essa gama de atos satisfativos coordenados, como é cediço.[2]

Logo, ao nosso sentir, não devem ser sobrestados os processos que estejam em procedimento recursal, ainda que o ato desafiado pelo recurso seja um ato executivo e/ou da fase de cumprimento de sentença.

Manejar por quê?

Em segundo lugar, é interessante observar que responsabilidade solidária de empresas do mesmo grupo econômico (CLT, art. 2º, §2º), a rigor, nada tem a ver com desconsideração de personalidade jurídica. Trata-se simplesmente de se reconhecer a responsabilidade solidária de uma outra pessoa jurídica pertencente ao mesmo grupo econômico, sem “desconsiderar” a personalidade jurídica daquela que efetivamente contratou o trabalhador e formalizou o contrato individual de trabalho. Trata-se, pois, de se reconhecer a sujeição passiva da empresa “ex vi legis”, em sede executiva, como codevedora,  na linha do que dispõe o art. 779 do CPC (que apenas não refere a solidariedade passiva derivada do grupo econômico porque essa não é uma modalidade “autóctone” do direito civil); trata-se de hipótese análoga à do seu inciso VI (“[…] do responsável tributário, assim definido em lei”).

Logo, uma vez instaurada a fase de execução, entendemos que tal empresa poderia ser incluída no polo passivo da execução por mera decisão judicial “ex officio” (CLT, art. 765), independentemente de provocação da parte interessada ou do manejo do IDPJ, exercitando-se o contraditório em sede de embargos à execução (CLT, art. 884) – contraditório diferido –, no que couber. Não se trata, pois, da hipótese do art.  790, VII, do CPC (“[…] do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica”), do mesmo diploma, exatamente porque não se trata de reconhecer a responsabilidade patrimonial de quem não teria legitimidade originária para figurar no polo passivo da execução, mas, ao revés, de se reconhecer a própria legitimidade passiva “ad causam” – originária – para a fase executiva do processo do trabalho. Por isso, aliás, no ano de 2003, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) cancelou o seu Enunciado 205, que vinha proibindo, desde 1985, a execução direta do responsável solidário integrante de grupo econômico em fase executiva, “por não ser sujeito passivo na execução” (eis o equívoco), se acaso não constasse do título executivo judicial.

Nessa medida, aliás, a nova regra do art. 513, §5º, do CPC (pela qual “[o] cumprimento da sentença não poderá ser promovido em face do fiador, do coobrigado ou do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento”) não teria aplicação ao processo do trabalho,[3] por incompatível com os seus princípios retores (simplicidade, informalidade, celeridade – que é mais do que duração razoável – e efetividade), inclusive por força do art. 889 da CLT, já que, no âmbito da execução fiscal, nos termos do art. 4º da Lei 6.830/1980, pode-se mover o processo executivo direta e indistintamente em face do devedor, do fiador, do espólio, da massa falida, do responsável tributário/legal ou dos sucessores a qualquer título.[4]

Evidentemente, porém, não é essa a direção proposta pelo relator do RE 1.387.795-MG, ministro Dias Toffoli, que termina por restaurar parcialmente a inteligência da referida Súmula 205 do TST. Assim, por não entrever na hipótese uma questão de legitimidade passiva “ad causam” para a execução – como, compreendemos, devesse ser o caso –, mas uma questão de responsabilização extraordinária de terceiros em fase executiva, é que a tese propõe a instauração, prévia e necessária, de um incidente de desconsideração da personalidade jurídica para que a empresa do grupo econômico que não constou da sentença ou do acórdão condenatório possa ser executada (e, com efeito, o incidente de desconsideração de personalidade jurídica é precisamente isso: uma nova modalidade de intervenção de terceiros, que se alinha com aquelas outras hipóteses dos artigos 119 a 137 do CPC, a saber, a assistência, a denunciação da lide, o chamamento ao processo e o “amicus curiae”).

Na verdade, o incidente de desconsideração de personalidade jurídica passará a funcionar impropriamente como um Incidente de Reconhecimento de Grupo Econômico (IRGE), que é objeto de projetos e anteprojetos de lei,[5] mas ainda não se converteu em lei. O Excelso Pretório adianta-se, no particular, em relação ao próprio Poder Legislativo. Mas, enfim, uma vez ratificado o voto do relator em plenário, “decisum habemus”: a despeito das nossas reservas no campo doutrinário, restará, no âmbito judiciário, dar pleno cumprimento à tese (inclusive – como manda a tese – para os casos de execuções redirecionadas antes da Lei 13.467/2017, que entrou em vigor em 11/11/2017).

Ainda que assim seja, porém, outras questões processuais seguirão em aberto; e não apenas em relação à solidariedade passiva derivada do grupo de empresas, mas em relação à desconsideração da personalidade jurídica em geral (inclusive nas hipóteses típicas, para as quais foi realmente talhado o instituto).

O que dizer, por exemplo, da instauração de diversos incidentes de desconsideração da personalidade jurídica, em face da(s) mesma(s) empresa(s), mas em diferentes unidades judiciárias? Como superar o risco de decisões divergentes e até contraditórias, a engendrar profundo sentimento de injustiça entre os credores que não lograrem direcionar suas execuções aos terceiros indicados? E quanto à repartição do ônus da prova nos IDPJs? É possível relativizar ou mesmo inverter esse ônus, à luz do art. 818, §§ 1º e 2º, da CLT? Cabe, por outro lado, formular o pedido de desconsideração em face de duas ou mais pessoas jurídicas em regime processual de litisconsórcio eventual? E como fica a questão dos honorários de sucumbência nesses incidentes?[6]

Essas e outras questões, querido leitor, serão examinadas e respondidas no mês de janeiro. Medite a respeito… Você, afinal, é réu do seu juízo.

Até lá!

Como de hábito, caríssima(o)s, receberemos observações, sugestões, críticas e – por que não? – elogios no correio eletrônico darkggf@uol.com.br. Dialogue conosco!

[1]  CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Trad. Paolo Capitanio. São Paulo: Saraiva, 1969. v. 1. p. 285.

[2] Essas são, a propósito, precisamente as razões utilizadas pela Vice-Presidência Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região – que ora reproduzimos, com acréscimos – para, nesses casos, indeferir o sobrestamento.

[3] Nesse sentido, cfr., por todos, BERNARDES, Felipe. Grupo econômico no processo do trabalho: o incidente da desconsideração da personalidade jurídica é pertinente para o reconhecimento de grupo econômico? ITD (Instituto Trabalho em Debate), 13/06/2020. Disponível em: http://trabalhoemdebate.com.br/artigo/detalhe/grupo-economico-no-processo-do-trabalho . Acesso em: 23/04/2021. Em sentido contrário, v. TUPINAMBÁ, Carolina; MILIONI, Pedro. O Incidente de Reconhecimento de Grupo Econômico (IRGE) no processo do trabalho: proposições iniciais para uma construção teórica e práticaRevista Fórum Trabalhista: RFTBelo Horizonte, v. 11, n. 47, p. 43-63, out./dez. 2022. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/v2/revista/P145/E52278/106367. Acesso em: 21 nov. 2023.

[4] Exatamente por isso, aliás, tramita na Câmara dos Deputados o PLP nº 17/2022 (“Código de Defesa do Contribuinte”), cujo art. 17 – para o qual já se apresentou emenda supressiva – passaria a obstar, no plano fiscal, essa execução direta.

[5] V., e.g., o PL n. 4946/2023, da Câmara dos Deputados, que pretende introduzir o art. 137-A ao CPC/2015 (“É vedado o redirecionamento imediato de execução civil para empresas pertencentes ao grupo econômico da parte executada, sendo necessária, para constrição patrimonial destas empresas, a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica [sic], independente [sic] da natureza jurídica da demanda”).

[6] Todas essas questões foram extraídas dos debates propostos no âmbito de excelente curso oferecido pela Enamat (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho), do Tribunal Superior do Trabalho, aos juízes do Trabalho de todo o Brasil, sobre o tema da desconsideração da personalidade jurídica (em sistema EaD). Incorporaremos, acrescentados, os comentários que à altura tecemos a respeito.