Muito antes das recentes majorações de alíquota do ICMS, a penúria fiscal vinha sendo enfrentada por essas pessoas políticas, entre outras formas, por meio da instituição de fundos, para fazer frente às despesas públicas cada vez maiores.
Como categoria jurídica descompromissada de qualquer ramo do direito[1], o fundo é um patrimônio despersonalizado destinado a uma finalidade específica. No âmbito do direito público, é compreendido como um universo de recursos financeiros, devidamente individualizado, dirigido à consecução de ação, programa ou atividade pública especial prevista em lei[2].
Alguns desses fundos, como o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (FEEF) e seu substituto, o Fundo de Orçamento Temporário (FOT), ambos criados pelo estado do Rio de Janeiro, o Fundo Estadual de Infraestrutura (Fundeinfra), instituído em Goiás, e o Fundo Estadual de Transporte (FET), do Tocantins, foram questionados pela CNI perante o Supremo.
Os fundos fluminenses, vale dizer, foram editados com amparo no Convênio ICMS 42/2016, instrumento celebrado na esfera do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e que autorizou os estados e o DF a criarem condição para a fruição de incentivos e benefícios relativos ao ICMS ou a reduzirem o montante dessas benesses fiscais.
Na ADI 5.635, julgada no plenário virtual em outubro, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) questionou a constitucionalidade do FEEF e do FOT, do estado do Rio de Janeiro, bem como do próprio convênio supracitado.
Não obstante tenha reconhecido o caráter tributário da cobrança estadual e assentado que se tratava de verdadeiro ICMS, o ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADI, acolheu apenas parcialmente os argumentos trazidos pela CNI, de modo a: i) afastar qualquer interpretação que vincule as receitas vertidas ao FEEF e ao FOT a um programa governamental específico; e ii) garantir a não cumulatividade do ICMS relativo ao depósito instituído, sem prejuízo da vedação ao aproveitamento indevido dos créditos.
Embora esse entendimento, seguido pela maioria da corte, tenha reconhecido a constitucionalidade dos fundos fluminenses e suas respectivas cobranças, as discussões quanto a esse modelo de afetação de receitas públicas para uma dada finalidade estão longe de um fim, pois cada fundo estadual possui uma modelagem própria.
A título exemplificativo, a contribuição destinada ao Fundeinfra/GO, questionada pela CNI por meio da ADI 7.363, incidente sobre produtos agroindústrias ou minerários, é condição para: i) o gozo de benefícios ou incentivos fiscais; ii) a fruição da imunidade do ICMS nas exportações realizadas por contribuintes estabelecidos no Estado; e iii) a aplicação da sistemática de substituição tributária. Apenas a primeira das hipóteses foi abordada no julgamento do FEEF e do FOT.
Por sua vez, o FET/TO, questionado pela CNI por meio da ADI 7.382, possui como uma de suas fontes de recursos contribuição incidente sobre operações de saídas, ainda que não tributadas, inclusive com destino à exportação ou equiparadas à exportação, de produtos de origem mineral ou animal. Novamente, se verifica descasamento entre o fato gerador dessa cobrança e a declarada constitucional no julgamento da ADI 5.635.
Como se verifica, o Fundeinfra/GO e o FET/TO não possuem plena similitude normativa com o FEEF e o FOT, de modo que ainda não é possível cogitar a formação de um entendimento pacificado do Supremo Tribunal Federal acerca dos fundos estaduais a partir do julgamento da ADI 5.635. Nesse contexto, a Corte deverá realizar exame pontual e específico de cada legislação estadual.
Ademais, possível mudança trazida pela Reforma Tributária ampla, objeto da PEC 45/2019, não terá o condão de sanar eventuais vícios que os fundos em questões possuam à luz do texto constitucional vigente ao tempo da publicação da lei de regência de cada fundo.[3] Tampouco prejudicará a discussão, pois recente jurisprudência do STF tem avançado no exame de prejuízo de ações diretas de inconstitucionalidade e decidido, em casos excepcionais, pela continuidade de seu julgamento, em atenção a valores maiores da preservação da supremacia da Carta da República e da efetividade da jurisdição constitucional.[4]
Portanto, nos futuros julgamentos das ações propostas pela CNI contra os fundos goiano e tocantinense, espera-se que o STF analise as suas particularidades, sempre apoiado nas garantias fundamentais dos contribuintes e nas regras constitucionais tributárias e financeiras, reconhecendo, por fim, as incompatibilidades entre as leis estaduais e a Carta da República.
[1] CRETELLA JÚNIOR, José. As categorias jurídicas e o direito público. Revista da Faculdade de Direito, USP, v. 62, n. 2, 1966, p. 214.
[2] ABRAHAM, Marcus. Curso de direito financeiro brasileiro, 4ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 99.
[3] ADI 6.308, Rel. Min. Roberto Barroso, Pleno, j. 6/6/2022 e p. 15/06/2022; ADI 4.596, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, j. 6/6/2018 e p. 23/7/2020; e ADI 2.189, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, j. 15/9/2010 e p. 16/12/2010.
[4] Vide ADI 127, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, j. 29/11/2021 e p. 15/2/2022; ADI 2.087, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, j. 12/4/2018 e p. 8/5/2018. Nesse último julgado constou expressamente da ementa: “(…)1. Substancial alteração do parâmetro de controle. Posicionamento da Corte no sentido de aceitar, em casos excepcionais, o conhecimento da ação, com vistas à máxima efetividade da jurisdição constitucional, ante a constatação de que a inconstitucionalidade persiste e é atual. Não ocorrência de prejuízo das normas impugnadas, suspensas por força da medida liminar, mas em vigor. Se o Tribunal, na linha da jurisprudência tradicional, assentar o prejuízo das ações diretas, revogando, por consequência, as medidas cautelares, a norma, embora seja clara e irremediavelmente inconstitucional, tornará a produzir seus efeitos, à luz do regramento instituído pela Emenda Constitucional nº 41/03, o qual, por autorizar a tributação dos inativos, confere à norma uma aparência de validade”.