Vulnerabilidade e processo coletivo: primeiras reflexões

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Inserida em uma sociedade de risco,[1] onde as desigualdades alimentam uma exposição assimétrica dos sujeitos aos riscos sociais, a consideração da vulnerabilidade se impôs aos Estados Democráticos na segunda metade do século XX, orientando um agir prospectivo voltado à superação de condições humanas de fragilidade.

Ao captar essa metamorfose moderna, Ulrick Beck elenca como fatores sociológicos responsáveis por esse fenômeno: i) a institucionalização das normas de igualdade, a evidenciar que a desigualdade global não poderia mais ser ignorada pelos espaços nacionais; ii) o aumento da desigualdade nacional interna; iii) a abolição dos recursos públicos voltados a compensar as desigualdades; iv) a nova distribuição de males, produtora de classes de risco, nações de risco e diferentes tipos e graus de desigualdade.[2]

Haveria, assim, uma síntese entre pobreza, vulnerabilidade e ameaças decorrentes das mudanças climáticas e desastres naturais, expondo o Homo cosmopoliticus a um mundo em que a desigualdade se tornou “socialmente explosiva”.[3]

A emergência para lidar com situações de risco social reprodutoras de violações aos direitos humanos (nota característica da vulnerabilidade[4]), influenciou a edição de legislações voltadas a proteger bens e valores indispensáveis às condições humanas mínimas de existência (ex: meio ambiente), voltando-se também à universalização dos direitos sociais.

Nas décadas seguintes, a crise de implementação do Welfare State, somada à decadência dos regimes socialistas, contribuiu para a erosão da perspectiva revolucionária marxista, fragilizando a noção de luta de classes e a dimensão meramente redistributiva dos pleitos reformistas.

No lugar de críticas dirigidas à exploração da força de trabalho, novas pautas de reinvindicação começaram a ascender na arena pública, voltando-se ao reconhecimento de identidades e à superação de práticas sociais discriminatórias.

Essas renovadas exigências por justiça passaram a fundamentar a busca por resultados sociais até então despercebidos pelo ideal de igualdade material, inaugurando o debate sobre temas como preconceito, intolerância, discriminação e outras formas de exercício do poder e controle não institucionalizados.[5]

No lugar de políticas que visavam “universalizar a igualdade, reduzindo as diferenças” (redistributivas), passa-se a cogitar de políticas cujo objetivo seria “enaltecer a diversidade, particularizando a diferença” (reconhecimento).[6] Em suma, a valorização da diferença e as lutas identitárias começam a integrar a pauta das reinvindicações por justiça pós-modernas.[7]

O processo civil brasileiro acompanhou essa tendência. Ainda em 1981, a Lei 6.938 já permitia a propositura de ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente (art. 14, §1°), tendo por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, assegurando, nesta linha, condições à proteção da dignidade da vida humana (art. 2º).

Posteriormente, a Lei n° 7.347/1985, que instituiu o principal instrumento de tutela de direitos coletivos no Brasil (a ação civil pública), ampliou esse espectro de proteção para alcançar não apenas o meio ambiente, mas também o grupo vulnerável específico dos consumidores.

Seu objeto foi expandido nas décadas seguintes, incorporando-se à possibilidade de tutela da honra e dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos (art. 1º, inc. VII), assim como de outros interesses difusos ou coletivos (art. 1º, inc. IV).[8]

A seu turno, a Constituição Federal de 1988 universalizou a tutela dos direitos transindividuais no país, incluindo expressamente os “direitos coletivos” no Capítulo I do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). Inseriu também uma cláusula-geral de inafastabilidade do controle jurisdicional no inciso XXXV do art. 5°, impondo a atuação da jurisdição diante de qualquer “lesão ou ameaça a direito” (individual ou coletivo).

Constitucionalizou, ademais, o inquérito civil e a ação civil pública, instrumentos dirigidos à proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, inc. III). Favoreceu, por fim, a tutela de direitos coletivos na esfera trabalhista, por meio das convenções e acordos coletivos de trabalho (art. 7°, inc. XXVI) e da defesa dos direitos coletivos da categoria pelos sindicatos (art. 8°, inc. III).

Com o advento da Lei 8.078 de 1990, instituiu-se o chamado microssistema de processo coletivo brasileiro.[9] Nas trilhas da descodificação, a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor passaram a funcionar como o centro axiológico deste microssistema, franqueando um diálogo recíproco entre seus institutos processuais, conforme artigos 21 da Lei 7.347 e 90 da Lei 8.078.

Positivou-se, ainda, a clássica conceituação trinária[10] dos direitos transindividuais (difusos, coletivos strictu sensu e individuais homogêneos), estabelecendo o CDC uma presunção absoluta de vulnerabilidade do consumidor em relação ao fornecedor no mercado de consumo (art. 4º, inc. I).

Nos anos seguintes, inspirado pela proteção constitucional dirigida aos direitos sociais, aos grupos vulneráveis e ao meio ambiente, o legislador passou a reforçar normativamente esse microssistema de processo coletivo.

Assim, quanto aos direitos sociais, é possível mencionar a edição de legislações envolvendo a defesa do direito à saúde (Leis nº 8.080/1990 e 9.656/1998), educação (Lei nº 9.394/1996), previdência (Lei nº 8.213/1991), assistência social (Lei nº 8.742/1993), moradia (Leis n° 10.257/2001, 11.977/2009 e 13.465/2017), alimentação (Lei nº 11.346/2006), segurança pública (Lei nº 13.675/2018), transporte e mobilidade urbana (Leis nº 8.987/1995, 12.587/2012 e 13.460/2017).

Já em relação às legislações envolvendo a proteção jurídica de grupos vulneráveis, sobressai a defesa das pessoas com deficiência (Leis n° 7.853/1989, 10.098/2000, 12.764/2012 e 13.146/2015), da criança e do adolescente (Leis n° 8.069/1990 e 13.257/2016), do idoso (Lei nº 10.741/2003), da mulher (Lei nº 11.340/2006), dos negros e quilombolas (Lei nº 12.288/2010), dos consumidores (Leis nº 8.078/1990), do torcedor (Lei nº 10.671/2003), das pessoas em situação de rua (Decreto nº 7.053/2009) e dos migrantes (Lei nº 13.445/2017).

Quanto às legislações envolvendo a defesa do meio ambiente, para além da já mencionada Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n° 6.938/1981), possível mencionar a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965 – ao menos desde a expansão de seu objeto pela CF/1988), o Código Florestal Brasileiro (Lei nº 12.651/2012), a Política Nacional de Educação Ambiental (Lei nº 9.795/1999), a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997), a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei nº 12.187/2009) e a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/10).

Como se pode perceber, a necessidade de proteção jurídica das vulnerabilidades advenientes de uma sociedade de risco e das lutas por reconhecimento identitário constituiu fator decisivo para o desenvolvimento do processo coletivo nacional, estando a tutela dos direitos coletivos umbilicalmente imbricada às vulnerabilidades modernas.

Admitir que a vulnerabilidade é constitutiva do processo coletivo brasileiro atrai – ou ao menos deveria atrair – duas reflexões relacionadas ao exercício das ações coletivas.[11]

Primeiramente, dada à interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos, a proteção das vulnerabilidades invoca natural instrumentalidade do processo coletivo em relação ao seu objeto.

Seja pelo prisma redistributivo (políticas que visam universalizar a igualdade), seja pelo prisma inclusivo (políticas que visam reconhecer as diferenças), a via adequada para transformar as estruturas sociais sobre as quais se manifestam essas vulnerabilidades são as ações coletivas.

Como lembra Amélia Soares da Rocha: “a vida contemporânea não permite visão fragmentada da realidade e a garantia de um mínimo de direitos a todos os humanos, em maior ou menor intensidade, consciente ou inconscientemente, interessa a todos, ricos e pobres, vulneráveis e não vulneráveis”. Daí porque conclui: “[…] a proteção da pessoa em condição de vulnerabilidade tem reflexo em todo o sistema”.[12]

No caso dos direitos sociais e do meio ambiente, a jurisdição coletiva assume papel corretivo essencial em caso de ações deficientes e omissões institucionais violadoras de direitos fundamentais em larga escala.

Ganha destaque aqui o processo coletivo estrutural, que se volta a fazer frente ao “estado de coisas inconstitucional” envolvendo a violação de direitos fundamentais de ordem social.

Doutro giro, em relação aos direitos dos grupos vulneráveis, as ações coletivas também se revestem de vital instrumentalidade social, meio indispensável para conduzir à arena pública o debate jurídico sobre direitos e políticas não suficientemente implementados em favor de minorias nas vias executiva ou legislativa.

A seu turno, a segunda reflexão dialoga com a legitimação institucional para o exercício das ações coletivas. Da vocação constitucional para a proteção de vulnerabilidades, extrai-se natural legitimidade para a atuação processual coletiva.

É o caso da Defensoria Pública, instituição que, por força constitucional, detém a missão de promover os direitos humanos e realizar a defesa judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos vulneráveis (art. 134, CF/1988).

Também é o caso do Ministério Público, instituição incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, CF/1988).

Observa-se, portanto, que a proteção jurídica das vulnerabilidades é ao mesmo tempo fundamento do processo coletivo brasileiro e critério justificador da atuação institucional dos entes legitimados.

Como eixo em torno do qual orbitam esses importantes instrumentos do acesso substancial à justiça, a aproximação entre vulnerabilidade e processo coletivo é medida que se impõe na implementação de um Estado Democrático de Direito.

[1] BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011.

[2] BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Rio de Janeiro, Zahar, 2018, p. 251/252.

[3] Ibid, p. 251/252.

[4] Sustentamos o seguinte conceito de vulnerabilidade: “trata-se de uma situação de predisposição a um risco social, ostentada por um sujeito ou grupo, a qual, em razão de determinantes históricas, econômicas ou culturais, favorece uma condição específica de violação de direitos humanos, reprodutora de situações de desrespeito, subjugação, assimetria de poder ou diminuição da cidadania, ofendendo a existência digna”. Desse conceito, extrai-se que toda condição vulnerável invariavelmente irá se caracterizar por uma situação de risco social, reprodutora de uma violação de direitos humanos. AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade: critério para adequação procedimental – a adaptação do procedimento como garantia ao acesso à justiça de sujeitos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI, 2021.

[5] FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Universitária, 2009.

[6] Sobre o tema, conferir: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/entre-igualdade-diferenca-fundamentos-protecao-juridica-vulnerabilidade-27052021

[7] FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political philosophical exchange. New York: Verso, 2003.

[8] Conforme o artigo 1º da Lei nº. 7.347/1985: “Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: l – ao meio-ambiente; ll – ao consumidor; III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; V – por infração da ordem econômica; VI – à ordem urbanística; VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos; VIII – ao patrimônio público e social”.

[9] Um microssistema pode ser definido como um “mosaico integrado de diplomas intercomunicantes, cujos comandos normativos se interpenetram e subsidiam, a fim de tornar efetiva a tutela jurisdicional dirigida a determinadas classes de pessoas ou direitos”. AZEVEDO, Júlio Camargo de. O microssistema de Processo Coletivo Brasileiro: Uma Análise feita à luz das Tendências Codificadoras. In: Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, Vol. 2, 2012, pp. 111-130.

[10] Conforme dispõe o parágrafo único do artigo 81: “a defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”.

[11] Sobre o tema da legitimidade processual coletiva em uma perspectiva teórica, conferir: AZEVEDO, Júlio Camargo de. Legitimidade Processual Coletiva, Revista de Processo, v. 237, nov/2014, p. 285-305.

[12] ROCHA, Amélia Soares da. Defensoria Pública: fundamentos, organização e funcionamento. São Paulo: Atlas, 2013, p. 12.