O último relatório bimestral de avaliação de receitas e despesas, divulgado nesta quarta-feira (22), trouxe um quadro fiscal bem pior do que vinha sendo prometido pela equipe econômica para 2023. E justamente em um momento no qual o time liderado pelo ministro Fernando Haddad é alvo de questionamentos por conta da interpretação sobre o arcabouço fiscal impor um duplo piso para corte de gastos, que reduziria o limite de contingenciamento em cerca de R$ 30 bilhões para o próximo ano.
As projeções apresentadas mostram um aumento de R$ 61,9 bilhões no déficit primário no conceito “abaixo da linha”, que é o calculado pelo Banco Central e que vale para o cumprimento da meta. O resultado previsto saltou de déficit de R$ 141,4 bilhões para R$ 203,4 bilhões (1,9% do PIB), apenas R$ 10 bilhões abaixo da meta para o ano.
A dramática piora no quadro em apenas dois meses tem alguns elementos. Um deles é o BC não aceitar contabilizar como receita primária os R$ 26 bilhões de PIS/Pasep não sacado que o Tesouro recolheu.
Nesse contexto, o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, manifestou abertamente sua discordância em torno da posição da autoridade monetária, inclusive apontando que ela estaria contra o dispositivo constitucional que previa esse recolhimento e sua incorporação no resultado primário. Além disso, Ceron trouxe mais uma questão que deve dar pano pra manga no tenso debate fiscal, ao indicar que o governo está avaliando regulamentar a metodologia de cálculo do primário, harmonizando as regras de Tesouro e BC, sem dar detalhes de como isso se daria.
Também pesaram na forte piora do cenário trazido pelo relatório bimestral as frustrações nas projeções de receitas administradas (tanto por fatores como queda da inflação como por atraso no recebimento de depósitos judiciais) e, no lado das despesas, as compensações de estados e municípios, além do aumento do piso de gastos da Saúde, impostos pela Lei Complementar 201.
Ceron destacou que o governo está buscando ser transparente sobre os fatores que levaram à deterioração fiscal e apontou que a tendência é que o resultado efetivo seja cerca de R$ 30 bilhões melhor do que o que está previsto no relatório (1,3% do PIB no conceito do Tesouro, 1,6% do PIB na metodologia do BC), por conta do empoçamento de gastos.
Por outro lado, é preciso lembrar que o saldo final pode ter um impacto adicional de R$ 95 bilhões do pagamento de precatórios, após eventual decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a emenda que permitiu o calote em parte desse passivo. Dessa forma, o déficit do ano, considerando um fator extraordinário, pode ficar ao redor dos R$ 270 bilhões, 2,7% do PIB.
Independentemente de ter justificativas plausíveis para um cenário de déficit mais agudo do que se previa, como o eventual pagamento de precatórios e frustrações por um bom motivo como a queda da inflação, a equipe econômica está com claras dificuldades de ancorar o cenário fiscal. No início do ano, apesar da meta de déficit ser de 2% do PIB, Haddad e companhia prometeram ficar perto de 1% de saldo negativo.
Em fins de março, ao apresentar e enviar o arcabouço fiscal, recalibraram o alvo para 0,5% de déficit, com uma desistência relâmpago de pouco mais de uma semana, retomando o 1% de déficit no discurso. Mais recentemente, quando os relatórios bimestrais já empurravam os números para a casa dos R$ 140 bilhões, a pasta já recalibrava suas estimativas para “1,1% a 1,2% do PIB”. Agora já fala em 1,3% no “acima da linha”, que é na prática 1,6% do PIB, sem considerar os precatórios.
Para quem promete que vai buscar o déficit zero e que vai pelo menos surpreender o mercado positivamente em 2024, essas mudanças e frustrações, ainda que justificadas, não ajudam. Muito menos somadas a teses polêmicas, como a interpretação do piso de contingenciamento e discussão até de metodologia de contabilização fiscal.
Ainda não há motivos para duvidar que Haddad e seu time estão de fato empenhados em melhorar substancialmente a posição fiscal do país. Inclusive, a divulgação do relatório mostra que alguns fatores de pressão do ano que vem acabaram vindo para 2023, uma ajuda da ordem de R$ 20 bilhões (metade do lado da receita, pelos depósitos judiciais da Caixa, e metade pela despesa, antecipação do pagamento de compensação de ICMS) para o esforço de 2024.
Mas o trabalho de ancoragem de expectativas fiscais está claramente deficiente, especialmente porque a equipe econômica se mostra muito amarrada para atuar no lado da despesa, ficando só com a perna do esforço arrecadatório.
Em abril, o governo terá que enviar a meta fiscal de 2025 e sinalizar a de 2026. A tendência é que a tensão fiscal volte a aumentar nesse período. Seria bom que, na tomada de decisão sobre essas metas, fosse levado em conta esse festival de idas e vindas em 2023 e que o governo trabalhe com uma meta mais realista, ainda que, para usar uma expressão de Haddad, ela seja “demandante” em termos de esforço fiscal. É melhor um cenário mais claro do que uma situação na qual o tempo todo a capacidade do governo entregar o que promete fique sob questionamento.