De quem é a culpa do apagão em SP?

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No mundo contemporâneo, o acesso à energia tornou-se uma necessidade fundamental. Sem ela, atividades básicas e triviais do cotidiano, como um banho quente no auge do inverno ou água gelada no calor do Rio de Janeiro, tornam-se inviáveis. Não é coincidência que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) esteja diretamente correlacionado com o acesso à energia elétrica.

No Brasil, segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), mais de 990 mil brasileiros vivem sem acesso ao serviço público de energia elétrica na Amazônia Legal, que abrange nove estados com vegetação amazônica (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão). A grande maioria dessas regiões apresenta os menores IDHs do país, com exceção de Mato Grosso e Tocantins. Vale destacar o Maranhão, que figura como a pior posição no ranking. A título de comparação em termos de IDH, o Maranhão está atrás da Bolívia, da Venezuela e do Iraque.

No contexto atual, ter acesso a uma energia de qualidade e segura é uma prioridade crucial para um país em desenvolvimento como o Brasil. No entanto, o apagão ocorrido em São Paulo devido às fortes chuvas em outubro gerou uma sensação de que a energia não é uma prioridade para o governo e as entidades responsáveis.

Essa percepção não reflete necessariamente a realidade. Quando ocorreu o apagão, os ânimos se exaltaram a ponto de o Governo de São Paulo e a empresa Enel brincarem de “batata quente”. Além disso, o apagão foi utilizado como capital político na esfera federal, associando a situação às privatizações ocorridas nos governos Temer e Bolsonaro, enquanto a oposição argumentava que apagões como esse eram mais frequentes na nova gestão.

Dessa forma, o tema se tornou mais uma questão polarizada. Em tempos como esses, é fundamental evitar discursos inflamados, clichês e soluções simplistas. O ideal é aprofundar-se no assunto para formar uma opinião mais embasada. Para isso, é essencial compreender o regime de concessões, entender as ondas de privatizações das distribuidoras e, por fim, analisar o caso específico da Enel. Essa abordagem permite separar o que é realmente problema e o que é apenas uma tentativa de se eximir da culpa e/ou se aproveitar politicamente da situação.

A Lei 8.987/1995, conhecida como Lei das Concessões, estabelece as diretrizes para o regime de concessão e permissão na prestação de serviços públicos, incluindo setores cruciais como o de energia. Sob esse marco legal, o poder concedente, representado pela União, seleciona por meio de um processo licitatório a concessionária que terá o direito de explorar determinado recurso. No cenário da energia, a concessionária assume a exploração do recurso e, em contrapartida, compromete-se a realizar investimentos na infraestrutura.

Importante ressaltar que, à medida que a concessionária se torna mais eficiente, ela tem a possibilidade de aumentar sua margem de lucro. Esse modelo é conhecido como regulação por incentivos, visando equilibrar os interesses das concessionárias com os dos consumidores. A regulação por incentivos busca, sobretudo, garantir tarifas razoáveis, criando um ambiente propício para estimular a eficiência e promover melhorias contínuas nos serviços.

Portanto, a acusação de que a Enel teria se tornado menos eficiente propositalmente não faz sentido lógico. A crítica válida sobre essa etapa envolve questionamentos sobre a possível obsolescência do modelo regulatório, a necessidade de aprimoramentos ou mesmo se ele deve ser totalmente revisto ou extinto.

Quanto às privatizações, elas ganharam maior impulso no setor de energia em meados dos anos 1990, impulsionadas pela Lei 8.031/1990, que instituiu o Programa Nacional de Desestatização (PND) do governo federal durante o mandato de Fernando Collor. Nesse período, diversas empresas foram privatizadas. Exemplos notáveis incluem a Cesp, a Light, a Cerj e a Eletropaulo.

A antiga Eletropaulo, empresa estatal fundada em 1981 durante o governo de Paulo Maluf e responsável pelo fornecimento de energia elétrica em São Paulo, foi privatizada em 1998 e passou a ser conhecida como AES Eletropaulo. Perdurou assim até 2018, quando ocorreu um novo leilão do controle da empresa, resultando na aquisição pela Enel. É importante destacar que, embora as privatizações no setor tenham começado nos anos 1990, elas foram retomadas com a Lei 13.360/2016.

Essa legislação tratou das condições para a transferência do controle acionário detido pela Eletrobras em suas seis companhias (Ceal, Cepisa, Ceron, Eletroacre, Boa Vista e Amazonas Energia), associadas à outorga da concessão do serviço de distribuição de energia elétrica em suas respectivas áreas, por um prazo de 30 anos.

Dessa maneira, é possível perceber que, apesar das novas privatizações terem sido endossadas pelos governos Temer e Bolsonaro, nada tem que ver com a privatização da Enel que foi celebrada ainda na década de 1990. Novamente, a crítica pertinente acerca dessa etapa diz respeito à qualidade do PND e a posterior Lei 13.360/2016, ou até mesmo a crítica sobre a parcimônia das privatizações se enveredando pela briga clássica entre esquerda e direita que culmina nas divergentes visões de economias justas. Mas associar o caso da Enel com o último governo é minimamente leviano.

Por fim, o caso específico do apagão em São Paulo na zona de concessão da Enel foi causado pela chuva intensa e consequente desabamentos de árvores por toda a metrópole. Após as chuvas, mais de 2,1 milhões de unidades consumidoras ficaram sem energia. Especialistas dizem que as chuvas e o calor das últimas semanas se devem a fenômenos intensificados pelas mudanças climáticas.

Eventos como esses são atípicos, fugindo da previsibilidade da concessionária. Ou seja, não é esperado que mais de 2 milhões de paulistanos fiquem no escuro simultaneamente. Por esse motivo, muito se discute sobre a aplicação do excludente de responsabilidade neste caso. Isso implicaria que a concessionária não seria responsabilizada por determinados eventos ou danos. Esse conceito pode ser aplicado em certos tipos de ocorrências, por exemplo, caso fortuito ou força maior abrangido por eventos extraordinários como desastres naturais, guerras etc.

Contudo, por mais que não fosse possível prever ou evitar o ocorrido em São Paulo, certamente seria possível mitigá-lo. A Prefeitura de São Paulo poderia ter sido mais eficiente na poda de árvores em áreas urbanizadas. Segundo o site Metrópoles, mais de 35% dos pedidos estão em aberto e moradores relatam que muitas das árvores que caíram nas fiações já estavam condenadas ou necessitavam de poda urgentemente. Ciente disso, a Enel responsabilizou a prefeitura, mas provavelmente esqueceu de mencionar que desde 2019 reduziu a sua equipe em mais de 36%, de acordo com reportagem da CNN Brasil.

Em meio às questões de culpa e responsabilidade, destaca-se a crescente frequência de eventos climáticos como o apagão, tornando urgente uma distribuição mais equitativa de responsabilidades. Sugere-se a criação de uma equipe de crise em colaboração com a prefeitura, elaborando planos de ação para restaurar a energia em interrupções abruptas.

Essencial é o mapeamento de zonas de risco, a implementação de distribuição subterrânea, entre outras medidas, reconhecendo que tais iniciativas podem impactar tarifas ou margens de lucro das distribuidoras. A discussão da Consulta Pública 152/2023 do Ministério de Minas e Energia sobre concessões de distribuição de energia oferece uma oportunidade para repensar a divisão de responsabilidades, alocar custos e desenvolver planos de contenção de crises. O acesso à energia no Brasil deve seguir acontecendo de forma contínua, segura e eficiente para que finalmente ocupemos nosso lugar como país em desenvolvimento.