O caso Maria e outros vs. Argentina

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Em 22 de agosto de 2023, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) proferiu decisão no caso Maria e outros Vs. Argentina, reconhecendo a violação de direitos cometida pelo Estado argentino em um caso de adoção.  Para preservar a privacidade e identidade das vítimas, estas são referidas na sentença por nomes fictícios: “Maria” e seu filho “Mariano”.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) submeteu no dia 25 de abril de 2022 à Corte IDH o caso de “Maria” e seu filho “Mariano” contra a Argentina, por violações cometidas pelo Estado argentino contra “Maria”, seu filho “Mariano” e sua mãe, avó de “Mariano”.  O caso ainda estava pendente de uma decisão final na Argentina quando a Corte IDH proferiu sua sentença.

Não é o primeiro caso levado à Corte IDH envolvendo irregularidades em processos de adoção.  Temos o caso Forneron e filha Vs Argentina, e também o caso Gelman Vs Uruguai.  A peculiaridade do caso Maria e Outro Vs. Argentina é o fato do caso envolver duas crianças, e não apenas uma; “Maria”, a mãe, tinha 13 anos no momento do nascimento da criança que seria adotada.

As violações tiveram início com a descoberta da gravidez de “Maria”, que engravidou com 12 anos e tinha 13 anos quando seu filho nasceu em agosto de 2014.   Por determinação judicial, a criança foi entregue a um casal na condição de tutores pré-adotivos imediatamente após o nascimento, e assim permaneceu apesar das inúmeras iniciativas de Maria e de sua mãe, avó do bebe, para reaver a guarda da criança.

Na audiência[1] na Corte IDH, Maria relatou que pouco antes do nascimento de “Mariano”, em uma das consultas na Maternidade, ela e sua mãe foram instadas a assinar um documento dirigido à Dirección Provincial de Promoción de los derechos de la Niñez, Adolescencia y Familia, no qual está dito que Maria manifestou livre e voluntariamente, com plena concordância da sua mãe, a vontade de entregar para guarda pré-adotiva e posterior adoção o seu bebe que estava por nascer, às pessoas idôneas e previamente acreditadas para esse fim, segundo o Registro único provincial de candidatos a Guarda com fins adotivos.

Ocorre que Maria, por ter apenas 13 anos, não estaria em condições de manifestar inequivocamente sua vontade de fazer a entrega para adoção. Apesar do processo de Maria e Mariano ter sido objeto de revisão por inúmeras instancias judiciais, em nenhum momento foi questionada a ausência de consentimento válido para a entrega de Mariano para adoção, e não foi revogada a guarda provisória concedida aos pretendentes à adoção.

Maria e seus familiares sempre afirmaram que não queriam abrir mão de Mariano. Em 2022, quando o caso chega à Corte IDH, Mariano continuava na guarda provisória dos tutores pré-adotivos, mesmo sem processo de adoção em curso, e o pedido de restituição, proposto em 2015, ainda estava pendente.  Por isso, foi dispensado o requisito de esgotamento de todos os recursos internos para admissão do caso.

Os representantes do Estado reconheceram na própria audiência a responsabilidade do Estado pelas violações de direitos sofridas por Maria, por sua mãe e por seu filho Mariano, e se comprometeram com as reparações determinadas pela Corte IDH.

A Corte IDH proferiu sua decisão em 22 de agosto de 2023[2], a qual foi embasada na Convenção Americana de Direitos Humanos, na Convenção sobre os Direitos da Criança e também, tendo sido constatada violência sofrida por Maria, no artigo 7º da Convenção de Belém do Pará.   Aceitou o reconhecimento de responsabilidade por parte do Estado argentino, e determinou a reparação integral dos danos sofridos por Maria, Mariano e pela mãe de Maria.   Por fim, reconheceu a responsabilidade do Estado argentino pelas violações dos direitos às garantias judiciais de Maria, Mariano e da mãe de Maria.

A discussão sobre o consentimento livre e informado para a entrega da criança para adoção é um tema de grande relevância também no Brasil neste momento.

A prática do ato de entrega voluntária da criança para adoção exige a capacidade civil plena, o que excluiria, por si, a possibilidade de se fazer uma entrega voluntária em caso das mães adolescentes, em especial as de 15 anos ou menos.  Não existe previsão de suprimento judicial desse consentimento, nem pode ser feita qualquer analogia com a autorização para casamento de menor.

No Brasil, a Lei 13.507 de 2017 incluiu o artigo 19-A no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA para tratar da entrega voluntária da criança para adoção.   O Conselho Nacional de Justiça – CNJ também se pronunciou sobre o assunto, na Resolução 485 do CNJ de 18/01/2023[3].  A Resolução menciona de forma expressa as obrigações do Estado com a proteção da infância assumidas na Convenção sobre os Direitos da Criança, em especial os artigos 9º e 21, também mencionados na sentença da Corte IDH no caso Maria e outros Vs. Argentina.

A supervisão judicial da entrega voluntária para adoção é condição essencial, consagrada no artigo 19-A do ECA e reforçado no artigo 2º da Resolução 485 do CNJ.  Assim, a gestante ou a mãe do recém-nascido que manifeste interesse em entregar seu filho à adoção, e que tenha manifestado essa intenção antes ou logo após o nascimento, deve ser encaminhada à Vara de Infancia e Juventude para que seja formalizado o procedimento judicial e para que seja feito o acompanhamento por uma equipe interprofissional, ou seja, multidisciplinar.  Um projeto que é referencia é o projeto Entrega Responsável, do TJRS[4].

Somente depois de feito um relatório se procede primeiro à busca na familia estendida (na legislação, familia extensa) de alguém que possa ficar com a criança.   Voltando ao caso Maria e outro Vs Argentina, cabe pontuar que a mãe de Maria várias vezes manifestou sua intenção de auxiliar na criação de Mariano, e a avó de Maria também compareceu à maternidade quando Mariano nasceu, externando a intenção inequívoca da família de ajudar Maria a criar Mariano.  Claramente, a família extensa estava em condições de ficar com Mariano, mas nem a vontade de Maria nem a vontade da familia foi respeitada.

O artigo 19-A § 5o do ECA determina que, se a criança tiver também um pai registral ou indicado, este deve ser chamado a se manifestar sobre a entrega voluntária, pois o pai poderá querer a guarda da criança.   Neste ponto, cabe lembrar o caso Forneron Vs Argentina, onde a Corte IDH analisou exatamente o direito do pai de se opor à decisão da mãe de entregar a criança para adoção, tendo lutado para que seu direito fosse preservado.

Nos termos do § 6º do artigo 19-A do ECA, na hipótese de não haver manifestação do outro genitor ou de membro da família extensa, a autoridade judiciária suspenderá o poder familiar da mãe, e a criança será colocada sob a guarda provisória de quem esteja habilitado a adotá-la. No caso Maria e outro Vs Argentina, a guarda provisória foi entregue a terceiros estranhos à família, sem que tivesse havido destituição ou suspensão do poder familiar de Maria.

O Estado argentino tem um prazo de um ano para cumprir a sentença, dando uma solução definitiva para o pedido de restituição e guarda de Mariano. Esperemos que, após tantos anos, Mariano possa passar a conviver com sua mãe e demais membros de sua família. A estas alturas, já existem laços afetivos entre Mariano e a família que o pretendia adotar e com quem convive desde que nasceu. Este é mais um exemplo de uma situação onde a demora na tomada de decisões em casos de restituição de menores significa não atender ao interesse superior da criança.

[1] Audiência realizada em 19 de outubro de 2022, por ocasião do 153º período ordinário de sessões da CorteIDH, gravação disponível em:  (https://www.youtube.com/live/l4vS1-rHedU?si=wU1aJKoWH0Vbq48G).

[2] O ato de notificação da sentença em 06 de outubro de 2023 disponível em (https://www.youtube.com/live/-bNKjFYdUGI?si=Uus65x7Dfzc5kI_Z).  Sentença disponível em espanhol: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_494_esp.pdf

[3]  Resolução 485/2023 disponível em:https://atos.cnj.jus.br/files/original1451502023012663d29386eee18.pdf

[4] Conferir o projeto do TJRS: Projeto Entrega Responsável. https://www.tjrs.jus.br/novo/cij/autoridade-central-estadual/