Cada vez mais, a tecnologia faz parte do nosso cotidiano. No Poder Judiciário, a realidade não é diferente. A pandemia de Covid-19 acabou por acelerar o ritmo das mudanças decorrentes da digitalização dos processos. Multiplicaram-se ainda as audiências e os julgamentos virtuais ou por videoconferência.
Neste cenário, resistir contra os avanços tecnológicos implicaria em uma luta inglória e sem sentido. Como é natural, a advocacia aplaude a celeridade e a agilidade que acompanham os atos processuais eletrônicos.
Tenha acesso ao JOTA PRO Poder, uma plataforma de monitoramento político com informações de bastidores que oferece mais transparência e previsibilidade para empresas. Conheça!
Ocorre que, no âmbito dos tribunais, a mudança esperada sempre se relacionou à forma (por meio eletrônico) e não à própria dinâmica dos julgamentos, caracterizados pelo debate e pela deliberação dialógica. Em outras palavras, nunca se desejou que a interação em tempo real, entre advogados e julgadores, viesse a ser afastada, como vem ocorrendo.
Vale lembrar que o Plenário Virtual surgiu no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2007. Por força dessa sistemática, ao invés de um julgamento em sessão presencial, os ministros passaram a disponibilizar seus votos de forma escrita em uma plataforma eletrônica durante um período de tempo, findo o qual os votos eram computados e declarado o resultado. Essa forma de apreciação fez desaparecer o encontro físico, com a deliberação em uma sessão de julgamento.
Mas, na época, a finalidade era tão somente a análise dos Ministros a respeito da existência ou não de repercussão geral, ou seja, um requisito para a admissão dos recursos. Isto é, não se apreciava o próprio mérito (que poderia ser futuramente submetido a sessão de julgamento), mas apenas sua condição de admissibilidade.
Observe-se que tais julgamentos virtuais sempre foram completamente diferentes das sessões por videoconferência, onde se altera tão somente o formato físico para o eletrônico, permanecendo a dinâmica da realização da sustentação oral e exposição dos votos em tempo real, com possibilidade de interação entre advogados e magistrados.
Em 2015, ao responder a uma consulta, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu que os tribunais poderiam aderir ao julgamento virtual, desde que observadas as cautelas necessárias à adequação dessa prática às exigências constitucionais e legais1. Lamentavelmente, não foi o que ocorreu.
Em 2016, o Supremo Tribunal Federal editou a Resolução 587, passando a prever o julgamento virtual também para a apreciação de embargos de declaração e agravos internos. Posteriormente, em 2019, a Resolução 642 ampliou esse leque, admitindo as medidas cautelares e as demais classes processuais, cuja matéria se encontrasse consolidada em jurisprudência dominante no âmbito do STF. Por fim, com a Emenda Regimental nº 53, de 18 de março de 2020 e a consequente Resolução nº 669, de 19 de março do mesmo ano, o âmbito dos julgamentos virtuais foi significativamente ampliado, passando a abranger, a critério do relator, todo e qualquer processo em trâmite no STF.
Os outros tribunais passaram a seguir esse modelo. Atualmente, tribunais estaduais e regionais federais podem julgar toda e qualquer matéria dentro dessa sistemática de voto escrito e ausência de deliberação em tempo real, bastando que não haja oposição do relator ou dos advogados das partes. É verdade que em algumas Cortes é facultada a realização de sustentação oral pelos advogados mediante o envio de um vídeo, que será disponibilizado na plataforma eletrônica. Mas isso não garante o debate, nem tampouco a interação entre defesa e julgadores.
Como destaca Luiz Guilherme Marinoni, o julgamento do colegiado está longe de poder ser pensado como um mero conjunto de decisões individuais2. É necessário o debate, a interação em tempo real e a deliberação conjunta.
No Superior Tribunal de Justiça, desde 2021, o art. 184-B do Regimento Interno estabelece que “As sessões virtuais devem estar disponíveis para acesso às partes, a seus advogados, aos defensores públicos e aos membros do Ministério Público na página do Superior Tribunal de Justiça na internet, mediante identificação eletrônica”.
Contudo, apesar da previsão regimental, até o momento as sessões virtuais do STJ não estão disponíveis para acesso às partes, sendo o acesso liberado apenas aos ministros. Isto significa que nem as partes, nem os seus advogados conseguem acompanhar o julgamento em tempo real, durante o tempo de tramitação na plataforma eletrônica. Conforme informações veiculadas pelo tribunal e comentadas por Fernando Mil Homens Moreira, “o artigo 184-B encontra-se suspenso até que a Secretaria de Tecnologia da Informação desenvolva ferramenta que possibilite o acesso às partes, a seus advogados”3.
Há, evidentemente, clara ofensa à garantia da publicidade dos atos processuais, a qual pressupõe a possibilidade da “presença de quaisquer pessoas aos atos que se realizem a portas abertas”.4
Observe-se que o Código de Processo Civil de 2015 admite a realização de atos processuais por meio eletrônico, mas estabelece no art. 194 que os sistemas de automação processual respeitarão a publicidade dos atos, o acesso e a participação das partes e de seus procuradores, inclusive nas audiências e sessões de julgamento. Tais determinações legais, contudo, não vem sendo observadas.
Por sua vez, a Constituição Federal assegura no art. 93, IX, que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
Não há dúvidas de que tais garantias processuais estão sendo reiteradamente violadas na grande maioria dos julgamentos virtuais. Tal violação vem sendo denunciada por juristas, advogados5 6 e pelo Conselho Federal da OAB7. Isso porque, como destacado por José Rogério Cruz e Tucci, “o princípio do contraditório sedimenta-se na possibilidade de atuação não em momentos episódicos, mas em todo o iter procedimental, numa sequência de atuações, estratégias e reações, que tornam efetiva a ampla defesa”8.
Como é natural, a garantia de um adequado acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV) pressupõe o diálogo entre julgador e advogado. Mesmo nos casos em que não é admitida a sustentação oral, deve ser permitida essa interação em tempo real. O Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94) prevê em seu art. 7º que constitui um direito do advogado: X – usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas.
Não é demasiado lembrar que essa é, além de uma prerrogativa do advogado, uma garantia da aplicação do devido processo legal em favor do próprio jurisdicionado.
Em suma, apesar das vantagens decorrentes da celeridade dos julgamentos virtuais, mostra-se “imprescindível que a adoção de tecnologias digitais se dê com a máxima observância das garantias e direitos fundamentais sob pena de ocultarem retrocessos travestidos de evolução tecnológica”9.
O alerta é importante. Afinal, a tecnologia deve ser uma aliada da adequada prestação jurisdicional, jamais o seu adversário.
____________________________________________________________
1 Consulta CNJ nº 000147.360.2014.2.00.0000
2 MARINONI, Luiz Guilherme. O julgamento nas cortes supremas: precedentes e decisão do recurso diante do novo CPC. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 34.
3 https://www.conjur.com.br/2023-abr-26/fernando-moreira-nulidade-julgamentos-virtuais-stj?pagina=3. Acesso em 02.11.2023.
4 Moniz de Aragão, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. II, 10ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2004, nota 11 ao art. 155, p. 17.
5 https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/04/8-de-janeiro-a-luz-do-dia.shtml. Acesso em 02.11.2023.
6 https://www.conjur.com.br/2023-abr-26/fernando-moreira-nulidade-julgamentos-virtuais-stj. Acesso em 02.11.2023.
7 https://oabdf.org.br/noticias/oab-contesta-plenario-virtual-e-vai-ao-stf-requerer-julgamentos-presenciais/ Acesso em 02.11.2023.
8 TUCCI, José Rogério Cruz e. Julgamento virtual, supressão da sustentação oral e violação às prerrogativas profissionais. In: https://www.migalhas.com.br/depeso/349950/julgamento-virtual–sustentacao-oral–prerrogativas-profissionais. Acesso em 02.11.2023.
9 COÊLHO, Marcus Vinícius Furtado. Plenário Virtual: desafios da virtualização dos julgamentos no Supremo Tribunal Federal. In: Revista Gralha Azul, vol. 11, abr-mai/2022, p. 166.