Ao se tratar de atrofia muscular espinhal, cada dia importa

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O meu cotidiano de trabalho é dividido entre atendimento no consultório e hospital, aulas na universidade, palestras em congressos, escrita de artigos científicos e muitas horas dedicadas a estudar oportunidades distintas de manejo para cada um dos meus pacientes. Não é fácil, mas esta é a escolha que faço todos os dias para proporcionar mais qualidade de vida para as pessoas. Ao passo que a classe médica luta por avanços da ciência e da medicina, como prover melhores e mais adequados arsenais terapêuticos, nos deparamos vez por outra com limitações, como a recomendação preliminar da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), órgão técnico do Ministério da Saúde responsável pela incorporação de novas tecnologias na rede de saúde pública, a respeito da atualização do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) de Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) Tipos I e II, guia de cuidado.

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No Natal de 2016, fomos presenteados pela Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora de saúde dos Estados Unidos, com a aprovação regulatória da primeira terapia modificadora para a atrofia muscular espinhal, a maior causa genética de morte de crianças até dois anos de idade. A comunidade de AME comemorou em todo o mundo e se mobilizou para que o medicamento estivesse disponível no Brasil logo no ano seguinte.

Ao longo dos últimos sete anos, tivemos conquistas relevantes no Brasil. Milhares de crianças puderam ter mais qualidade de vida e seus pais deixaram de pensar que a doença seria uma sentença de morte. Ainda neste período, foram incorporadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) mais duas terapias: atualmente, temos três tratamentos farmacológicos que buscam a estabilização da doença, a regressão dos sintomas e impedem a progressão da AME. Isso é uma enorme conquista porque até pouco tempo (menos de uma década) a AME era uma doença intratável, mas hoje, por meio dos tratamentos que mudam o curso natural da doença, nós médicos definimos, juntamente com a família, os cuidados mais adequados. Isso é o que chamamos de tratamento individualizado e humanizado.

Diante de um cenário ainda desafiador em que famílias têm dificuldades como o diagnóstico tardio da AME e, em consequência, o acesso a tratamentos, a revisão do PCDT, que deveria trazer avanços e melhores condições para todo o sistema, se apresenta como um retrocesso em três pontos. A começar pelo cerceamento da atuação médica em lançar mão das terapias existentes para salvar vidas.

Outro ponto que chama atenção é a impossibilidade da administração de outros medicamentos, caso uma criança tenha recebido a terapia gênica, e não tenha tido resposta esperada. Na última Cure SMA, a mais importante conferência anual sobre atrofia muscular espinhal, realizada em julho em Orlando (EUA), foram apresentados dados preliminares de um estudo científico, em desenvolvimento, que evidenciaram benefícios, a partir do tratamento com o medicamento nusinersena, em bebês e crianças com necessidades médicas não atendidas, após uso de terapia gênica. Existem certamente fatores genéticos individuais que possam levar a respostas diferentes aos tratamentos disponíveis, desta forma a individualização de caso a caso é algo inevitável.

Como se tudo isso não fosse suficientemente questionável, a revisão ainda sugere que, caso haja regressão da doença, de acordo com uma escala de avaliação do quadro clínico do paciente, deve-se avaliar a interrupção do tratamento. Precisamos rever e chamar atenção para essas limitações que prejudicam a autonomia e a decisão compartilhada entre médico e paciente.

Recorro à fala do cientista Adrian Krainer, criador do primeiro medicamento para tratar pessoas com AME: “Cada dia importa”. Assim como temos olhos muito atentos para a doença em si e, claro para as pessoas que vivem com AME, é necessário que toda a comunidade dos raros esteja alerta para questões administrativas que possam impactar nossas conquistas até aqui. Elas não estão 100% asseguradas. E uma forma democrática de pressionar as pessoas à frente dos processos decisórios das políticas públicas de saúde é a participação social no processo da revisão do PCDT pela Conitec.