A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) divulgou a sentença proferida no caso Hendrix vs Guatemala[1]. Decidiu que o Estado da Guatemala não violou os direitos à igualdade e à não discriminação ao negar acesso à carreira de notário a um cidadão norte-americano, não domiciliado na Guatemala, em razão de sua nacionalidade e domicílio.
O caso merece máxima atenção, quer pela questão de fundo a respeito do alcance do princípio da igualdade e não discriminação (artigo 24 da Convenção Americana de Direitos Humanos, CADH), quer pela controvérsia processual presente no debate entre a posição majoritária e o voto divergente proferido pelo juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch.
A divergência chamou atenção para a necessidade de manutenção dos standards interamericanos construídos no bloco de convencionalidade dos precedentes da Corte IDH, que tem um histórico de dar máxima amplitude ao princípio da igualdade e não discriminação.
O caso envolveu a controvérsia sobre as regras previstas pelo Estado da Guatemala para o exercício da profissão de notariado, pois Hendrix foi impedido de exercer a profissão em virtude de sua nacionalidade americana, uma vez que as leis do país em questão estabelecem que para a função de notário é exigida a nacionalidade guatemalteca e domicílio no país.
A Corte IDH considerou, por maioria, que as exigências em questão eram razoáveis, em especial que a exigência de nacionalidade guatemalteca se enquadrava em requisito proporcional às responsabilidades de exercício de função delegada Estatal, não tendo sido configurada a restrição ilegítima do direito.
O standard interamericano considera que a igualdade e a não discriminação são normas imperativas de direito internacional conforme os Pareceres Consultivos n. 16/99 e 18/03[2]. Ainda assim, desde que não haja discriminação, o sistema admite diferenciações entre nacionais e estrageiros na forma do Parecer Consultivo n. 04/94, o que, de um lado, confere uma certa margem de discricionariedade aos Estados, como destacou Pedro Nikken[3], mas, de outro, não permite adotar normas e posturas à margem do Estado de direito[4].
Por isso, a jurisprudência da Corte possui aquilo que Eduardo Manuel Val denomina de um o stare decis interamericano, ou seja, um sistema de vinculação aos precedentes[5]. Por outro lado, há quem resista a essa ideia, afirmando que há um “acervo decisório” e não um sistema de precedentes. Discordamos do último entendimento. A força expansiva das decisões e interpretações do sistema interamericano possui um papel de fortalecimento do Estado Interamericano Direito de forma hemisférica. Diminuir essa força expansiva significa ignorar as normas de interpretação da própria CADH, nos arts. 26 e 29, que demandam tratar os tratados de direitos humanos como instrumentos vivos, numa interpretação evolutiva, mais favorável à luz do princípio pro persona.
Não existe, porém, uma teorização da tipologia dos precedentes no âmbito da Corte IDH análoga ao que existe no direito constitucional[6]. Propomos a seguinte classificação dos precedentes interamericanos: (i) vinculantes; (ii) obrigatórios; (iii) persuasivos; e (iv) superprecedentes.
Em primeiro lugar, os Precedentes interamericanos vinculantes decorrem das sentenças e as medidas provisionais da Corte IDH, cujas decisões são obrigatórias e vinculantes, por gerarem responsabilidade internacional direta para os Estados condenados e porque sua coisa julgada interpretada é obrigatória para todos os demais Estados que aceitaram a jurisdição da Corte IDH.
Em segundo lugar, há Precedentes interamericanos de eficácia obrigatória, ou seja, espécies decisórias que não dão ensejo diretamente à responsabilidade internacional dos Estados, embora isso não signifique que tais opiniões não sejam obrigatórias. É o caso dos Pareceres Consultivos da Corte IDH, que desentranham o sentido das normas de direitos humanos, compondo o bloco de convencionalidade. Obrigam o seu respeito nos casos contenciosos futuros. Reflexamente, portanto, podem gerar uma responsabilidade internacional por violar o padrão interamericano fixado.
Em terceiro lugar, os Precedentes interamericanos persuasivos podem ser exemplificados com os relatórios de mérito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que configuram recomendações aos Estados numa tentativa, num primeiro momento, sigilosa, consensual e amigável. Caso não alcançada, a publicação do relatório é um exercício do chamado “power of shaming” (poder de envergonhar) por meio de sua publicidade crítica.
Em quarto lugar, há os Superprecedentes[7] interamericanos. Essa categoria não parte de uma visão meramente normativa sobre o grau de vinculação (vinculante, obrigatório ou persuasivo). Ao contrário, possui uma visão empiricamente sustentada no que se referte ao impacto na sociedade e nas instituições de certas decisões, bem como a existência de grupos de pressão e apoio para manter tais decisões, o que gera um significado social compartilhado.
Faltam estudos quantitativos a respeito disso. Ainda assim, é possível observar o profundo impacto transformador na cultura, tanto de casos da CIDH como o caso Maria da Penha vs Brasil que é símbolo da luta contra a violência de gênero, quanto de casos da Corte IDH, como os casos Barrios Altos vs Peru e Almonacid Arrellanos vs Chile que deflagraram uma profunda transformação institucional em prol do controle de convencionalidade em toda nossa região.
Em linhas gerais, o caso Hendrix vs Guatemala (2023) provoca intensamente a reflexão sobre o stare decisis interamericano, o nosso sistema de precedentes regional, a partir do sistema de petições e casos do SIDH. Suscita a importância de que decisões tomadas em casos similares no passado por meio de mecanismos que identifiquem as questões comuns ou semelhantes entre os casos para estabilizar e fixar standards comuns e progressivamente mais elevados na promoção e proteção dos direitos humanos pelas instituições interamericanas e pelos Estados.
Nesse sentido, o voto do juiz Rodrigo Mudrovitsch é preciso, valendo destacar a sua afirmação de que é dever da Corte IDH de, em cada caso concreto, contemplar as implicações de sua sentença na edificação seus standards, a fim de garantir a coerência da sua cadeia de precedentes. Mais precisamente, identifica que, no caso Hendrix vs. Guatemala, houve um distanciamento em relação ao caminho que vinha sendo trilhado pela Corte IDH em matéria de igualdade e não discriminação. [8]
O magistrado deixou claro o dever da Corte IDH em manter a integridade dos seus precedentes, enfatizando que o papel da instituição é funcionar como uma Corte de Precedentes ou como preferimos um Tribunal Constitucional Interamericano[9], cujos standards devem se consolidar para que seja possível permear e exercer o papel de consolidar culturalmente a construção de uma sociedade aberta de intérpretes da CADH.
O juiz interamericano não deve interpretar restritivamente direitos humanos, como foi feito na posição vencedora. Ao contrário, a Corte IDH deve estimular que os Estados e a sociedade em geral se engajem na adoção de padrões mais elevados de proteção dos direitos humanos. Isso serve à construção de um Estado Democrático e interamericano de Direito[10], que realiza um controle difuso de convencionalidade destrutivo das violações e construtivo de políticas públicas, para promover mais direitos para mais humanos.
Deve-se estimular que suas decisões sejam metadecisões, ou seja, decisões com padrões para resolver outras decisões, seja no plano interamericano, seja no plano interno, por meio de ações estratégicas em direitos humanos que respeitem a coisa julgada interpretada da decisão da Corte IDH, por meio da força expansiva dos precedentes interamericanos. Do contrário, viola-se o art. 29 da CADH criando um verdadeiro stare (in)decisis interamericano.
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[1] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_485_esp.pdf
[2] SILVA, Gabriel Mattos da. A Opinião Consultiva n. 18/03 da Corte Interamericana: os direitos dos migrantes indocumentados. Disponível em: https://nidh.com.br/opiniao-consultiva-n-o-13-93-as-atribuicoes-da-comissao-interamericana-de-direitos-humanos/
[3] NIKKEN. Pedro. La funcción consultiva de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/a11682.pdf
[4] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direitos Internacional dos Direitos Humanos. Vol. 2, Porto Alegre: Sérgio Antonio de Fabris, 1999, p 126.
[5] VAL, Eduardo Manuel ; GOMES, E. P. G. F. ; RAMIRES, R. L. C. F. . CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E OS TRIBUNAIS BRASILEIROS NO CONTROLE DIFUSO DE CONVENCIONALIDADE: O RECONHECIMENTO E CUMPRIMENTO DAS DECISÕES INTERNACIONAIS NO BRASIL. In: ; Siddharta Legale ;José Ribas Vieira; Margarida Lacombe. (Org.). Jurisdição constitucional e direito constitucional internacional. 1ed.Belo Horizonte: Fórum, 2016, v. 1, p. 178-202.
[6] Por todos, vale conferir a tipologia em vinculantes, persuasivos e de eficácia intermediária no âmbito apenas do direito constitucional proposta por Patricia Perrone, cf. MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
[7] LEGALE, Siddharta, Superprecedentes. Revista Direito GV 12, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/Qth6CXrWrdFMWcpxhx6M4Vm/
[8] A propósito, o raciocínio sobre o tema já foi abordado anteriormente, considerando a Corte IDH como um Tribunal Constitucional de precedentes e destacando o bloco de convencionalidade sobre DESCA teriam um status de superprecedente. Cf. MUDROVITSCH, Rodrigo. Voto concorrente no caso Guevara Díaz vs Costa Rica de 22 de junho de 2022. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_453_esp.pdf
[9] LEGALE, Siddharta. A Corte Interamericana de Direitos Humanos como Tribunal Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
[10] CYRILLO, Carolina; FUENTES-CONTRERAS, Édgar Hernán; LEGALE, Siddharta. The Inter-American Rule of Law in South American constitutionalism. In: Sequência (Florianópolis), vol. 42, n. 88, pp. (1-27), 2021. pp. 19-20. https://www.scielo.br/j/seq/a/s5ZDFH8mH3rG5RNpM9h7FXn/