A ação civil pública contra a Jurimetria em cinco lições

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A história ganhou repercussão nos meios especializados. O Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais propôs ação civil pública contra a Uber Brasil se opondo ao uso de Jurimetria em suas estratégias de acordo. A juíza Sandra Maria Thomaz Leidecker, responsável pelo caso, assim resumiu a pretensão do MPT: “O  Ministério Público do Trabalho postula indenização […] em razão de alegada  conduta fraudulenta da ré, que […] faz uso da estratégia processual de celebrar acordos trabalhistas com base na previsão de resultado do julgamento do Órgão Jurisdicional, desvirtuando a utilização de dados estatísticos de jurimetria, com o  objetivo de manipular a formação de jurisprudência.”

Além disso, “a ré constrói jurisprudência artificial, viola princípios constitucionais, tais como “juiz natural”, “devido processo legal”, “ampla defesa”, “contraditório”, “lealdade” e “boa-fé”, comprometendo, ao fim, o cumprimento da função do Poder Judiciário.”  

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Após a apresentação de defesa, a ação foi julgada totalmente improcedente de forma antecipada, reconhecendo a juíza que o uso de modelos estatísticos para  avaliar propostas de acordo por si só não caracteriza manipulação da  jurisprudência e não afeta a pacificação, a uniformidade e a estabilidade da  justiça. A sentença foi taxativa ao afirmar que a “jurimetria, como instrumento de  análise de risco para oferta de acordos, não fere legislação nacional.” Ótimo.

Problema resolvido? Ainda não. Cabe recurso e a discussão deve continuar até que a Justiça se manifeste nas instâncias revisoras e venha o trânsito em julgado. Mas já há algumas lições a serem tiradas do episódio.  

Conceitos científicos são exemplos de estruturas resilientes, dotadas da  resistência necessária para não apenas suportar ataques, mas para se fortalecer  com o debate público e com polêmicas. Ideias são antifrágeis e se alimentam das  críticas que recebem, em um processo de aperfeiçoamento de suas  fundamentações.

Dentro desse contexto, a Ação Civil Pública (ACP) do MPT acabou inadvertidamente  se tornando uma oportunidade, talvez a maior até hoje, para divulgar o conceito e explicar o funcionamento da Jurimetria. De todos os pontos debatidos no caso,  cinco críticas me pareceram as mais relevantes e merecem ser comentadas.  

Primeiro, não há nada de novo na estratégia de fazer acordos em ações com  chances de derrota. Todo bom advogado realiza prognósticos para suas medidas  judiciais e recomenda acordo naquelas em que as chances de derrota são elevadas. Separar os casos com boas chances de êxito daqueles para acordo é o cerne da  advocacia. Inclusive, propor ações frívolas e deduzir pretensões  contrárias a lei pode caracterizar litigância de má-fé e infração ética.  

Nas palavras da sentença: “Tal estratégia, no entanto, não pode ser tida  como inovadora, nem mesmo distante daquela que outros grandes litigantes, há  muito, também adotam. Tal prática é realizada, desde os primórdios, pelos  advogados diligentes, a fim de orientar os clientes.”  

Segundo, as propostas de acordo eram avaliadas de maneira intuitiva pelos  advogados com base em sua experiência pessoal e em pesquisas de jurisprudência  casuísticas. O uso de Jurimetria apenas acresceu uma metodologia mais robusta para essa tarefa, ajustando de forma mais precisa as chances de derrota e o tempo esperado até o julgamento. Modelos matemáticos são apenas um catalisador adicionado a uma prática que é da essência da advocacia. Ao menos da advocacia responsável.  

Nos termos da sentença: “A ponderação dos riscos deve — ou ao menos deveria — ser feita por todas as partes envolvidas em um processo, pois a incerteza  de sucesso da demanda abrange também a parte reclamante. A partir disso, feita tal análise inicial de viabilidade de sucesso ou não na demanda, o que este juízo  constata é que a ré acrescentou outra variante à sua análise: a probabilidade de  êxito em segundo grau, análise aprimorada e otimizada por meio da jurimetria.”  

Terceiro, qualquer advogado sempre ajustará suas propostas de acordo tomando em conta a probabilidade de derrota na ação. Não seria racional exigir que a parte propusesse acordos em ações que lhes serão favoráveis. Como bem colocou a sentença: os “operadores do direito não só podem, como devem, avaliar as  chances de êxito para, assim, sugerir a melhor estratégia. Tanto as partes quanto o julgador, conhecendo a jurisprudência, são racionalmente estimulados à composição do conflito.”

E ainda: “Ora, independente da matéria em discussão, o fato de se ter maior ou menor chance de se obter procedência ou improcedência  de um pleito, sopesado o custo que se teria ao propor um acordo e resolver o  conflito, não se mostra ilícito, mas prudente.”  

Quarto, sistemas judiciais transparentes e abertos, como a nossa Justiça do Trabalho, nos quais os precedentes são públicos e as partes são livres para se autocompor, tendem a selecionar para julgamento apenas casos em que há  incerteza sobre o resultado final. E esse é o caso da relação empregatícia entre  motoristas e plataformas.

Como a CLT não trata de subordinação algorítmica, a questão gerou controvérsia e diferentes correntes jurisprudenciais surgiram nos tribunais. As visões diferentes entre juízes naturalmente levam os advogados a adotar condutas distintas a depender do caso, fazendo acordos em alguns e litigando em outros.  

Mais uma vez merece referência a sentença, ao reconhecer que a divergência  nasce dos julgadores, situação perante a qual os jurisdicionados apenas reagem:  ““Pontue-se que é absolutamente possível que, para um mesmo fato ou norma  jurídica, haja interpretações diversas, a depender da convicção do julgador de  primeira instância ou da Turma para a qual o processo é distribuído. Trata-se de  mero fruto da interpretação de quem julga, dado que não constitui ciência exata.”  

E quinto, acordos não são capazes de criar uma falsa ilusão de unanimidade  jurisprudencial em favor da plataforma, transmutando a divergência em uma  aparente unanimidade. Os precedentes favoráveis aos reclamantes são públicos,  tanto que utilizados pelos modelos jurimétricos, e podem ser consultados pela  população.

Além disso, ao contrário do que supõe a ACP, a celebração de acordos não oculta divergência. Ao contrário, ela é uma sinalização poderosa ao mercado de que há algum grau de viabilidade nas reclamações, mais forte, inclusive, do que uma sentença passível de recurso. O mercado e os advogados trabalhistas são muito mais atentos e preparados para interpretar a jurisprudência e as sinalizações da Justiça do que assume a ACP.  

Para concluir, uma última observação. A Justiça do Trabalho é o mais antigo  braço do Judiciário a se preocupar em organizar estatísticas. São 100 anos de  esforços de coleta de dados, iniciados em 1923. Ela é, também, atualmente, o braço mais avançado na organização da rede de pesquisas judiciárias. Iniciativa criada pelo Resolução 462/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que vem sendo conduzida pelo excepcional trabalho da Secretaria de Pesquisa Judiciária e Ciência de Dados do TST.  

O TST e a Justiça do Trabalho são pioneiros e continuam na vanguarda da  abordagem quantitativa no país. Para honrar essa tradição, o caminho não é sancionar o uso de modelos estatísticos. O caminho, na linha do que propaga o  TST e suas secretarias, é incentivar a pesquisa, promover o uso racional e ético  dos dados e abrir suas bases dados ao público em geral, acadêmicos e mercado.  

Assim, será possível tornar a Jurimetria mais acessível aos reclamantes e seus  advogados, bem como incrementar a racionalidade e eficácia das políticas  públicas. A pesquisa empírica é a solução e não um problema.