Há um claro movimento de alguns políticos, incluindo o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, de transformar a discussão da mudança de meta fiscal de 2024 em fato consumado. A despeito de essa alteração no objetivo de zerar o déficit no próximo ano para um saldo negativo de 0,5% do PIB efetivamente ter uma chance elevada de ocorrer nos próximos meses, diferentes fontes do governo reforçaram a esta coluna e à analista de política do JOTA, Bárbara Baião, nesta sexta-feira (3/11), que a decisão final ainda não está tomada.
Até que isso ocorra oficialmente, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ainda tem chances de viabilizar sua tese e manter a meta do jeito que está. Ele mesmo, porém, sabe que o jogo complicou muito nesse tema e sua postura nas entrevistas aos jornalistas evidencia isso — a despeito das queixas dele na portaria do ministério nesta sexta-feira sobre a imprensa que o aborda diuturnamente.
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O debate da meta envolve uma série de elementos que precisam ser levados em conta. De fato, o objetivo de Haddad é excessivamente ambicioso e depende de fatores que ele controla, mas também que não controla.
Nesse contexto, é inevitável provocar o governo e o presidente Lula sobre algumas questões: essa meta de Haddad já não era excessiva entre o fim de março e início de abril, quando foram enviados o arcabouço e a LDO de 2024? Aliás, a Fazenda anunciar que a meta de 2023 seria de 0,5% de déficit e em duas semanas voltar a dizer que estava mirando déficit de 1% do PIB para este ano não evidenciou ainda que o desafio do ano seguinte estaria mais para o campo do inexequível, dada as prioridades políticas do grupo político liderado por Lula? Por que, diante disso, no momento do envio da LDO, em 15 de abril, o governo não se rendeu e definiu uma meta que o permitiria construir um orçamento mais realista?
Haddad não explicou direito a situação ao seu chefe ou Lula entendeu o quadro e topou bancar a posição de seu preferido naquele momento, a despeito dos protestos de colegas, com a tese do “depois a gente vê isso melhor”?
Essa dúvida, aliás, fica ainda maior com a fala do próprio ministro da Fazenda na última segunda-feira (30) dizendo que Lula ficou muito preocupado ao saber da situação da receita, que está se comportando pior do que indicaria o crescimento do PIB.
Haddad atribuiu isso a dois problemas que remontam ao ano de 2017: a escalada de abatimentos de subvenção do ICMS e às compensações de tributos devidos às empresas que ganharam a causa da retirada do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins.
Ora, esses problemas não são nenhuma novidade. A imprensa e muitos analistas alertaram para os riscos fiscais na época das decisões do Congresso e do Supremo. As projeções da Receita Federal para a arrecadação certamente levaram esses fatores em conta. A única novidade mesmo foi a queda da inflação, que tem surpreendido para baixo e prejudicado a arrecadação, mas não é isso que tornou a meta difícil de ser alcançada.
Para ser justo, é preciso lembrar também que no meio do caminho entre abril e agora de fato houve uma novidade importante: o arcabouço fiscal foi aprovado com uma mudança que obriga o governo a contingenciar despesas, em caso de risco de descumprimento da meta, algo que não havia na proposta original do governo. Essa foi uma imposição do Congresso, que é correta, diga-se, mas que torna mais difícil para o governo gerenciar sua política fiscal.
Quando essa tese prosperou na Câmara em junho, os riscos de descumprimento da meta eram similares aos atuais, até maiores porque não havia ainda avanços relevantes na agenda arrecadatória. Não seria ali a hora de já rever as metas de 2024 e dos anos seguintes para valores mais realistas com as condições políticas do atual governo gerenciar o fiscal? O próprio Congresso não deveria ter pensado e alertado a sociedade de que a melhora estrutural que estava sendo feita no arcabouço exigia ao menos a discussão de que o governo revisasse seus objetivos fiscais?
Alguns ministros tentaram rediscutir isso em agosto, com a necessidade de envio do orçamento. Mais uma vez, Lula deu aval à tese de Haddad e bancou a meta zero. Agora, o presidente reabriu o debate e Haddad se vê na difícil situação de poder ser atropelado pelos seus colegas, no melhor clima de “eu avisei”. Como não é bobo, o ministro certamente sabia dos riscos que corria.
Riscos que aumentam com a “chuva de imposto” que começa a gerar reclamações cada vez mais fortes do setor empresarial e que depende de aval do Congresso. Nesse contexto, Lula explicitou para o público o dilema entre provavelmente contingenciar despesas, como manda o arcabouço, ou mudar a meta e garantir os gastos previstos no limite da regra, sem qualquer ajuste adicional.
É importante dizer que alterar o alvo do ano que vem não destrói o arcabouço antes de ele entrar em vigor, como postulam alguns economistas, mas de fato o enfraquece. Afinal, o espírito da nova regra fiscal é que a despesa precisa seguir a receita.
Se a meta de resultado foi definida pressupondo um comportamento da arrecadação e ela não está se efetivando, é preciso conter o gasto contratado. É uma correção de rota, mas também uma punição pelos erros de cálculo, tanto econômicos como políticos. Aceitá-la, especialmente num contexto no qual o orçamento foi bem recomposto pela PEC da transição e a sua projeção para 2024 é de crescimento real, parece razoável e daria credibilidade para o governo e para a regra que ele mesmo propôs.
Por outro lado, um alvo mais flexível, dada a evolução negativa das receitas, não é uma ideia desprovida de sentido ou simplesmente uma irresponsabilidade, como o reducionismo que muitas vezes permeia o debate econômico gosta de fazer.
Mesmo que seja perfeitamente possível trabalhar com um bloqueio de R$ 50 e poucos bilhões ano que vem, dado o gasto discricionário acima da média dos últimos anos, o volume a ser bloqueado é muito grande — independentemente de ser um ano eleitoral ou não. Isso pode acabar prejudicando a execução de políticas públicas, com impactos de longo prazo para a gestão pública. Além disso, poderia reforçar a contração fiscal que já estava contratada para 2024, em meio a um risco de desaceleração mais forte da economia mundial.
É verdade que há ineficiências no gasto, bem como nas receitas, a serem corrigidas por governo e Congresso, mas esse trabalho teria pouco impacto no ano que vem. Por isso, realmente há pouca margem de manobra para o governo. E é bom lembrar que ele foi eleito para executar um orçamento que implica em maior gasto público, ainda que com limites.
Além disso, um ajuste de 0,5 ponto do PIB na meta (que desponta como favorito no momento) não seria mesmo o fim do mundo. Pelas projeções atuais do mercado, esse alvo ainda imporia algum esforço para o governo fazer nesse quadro de receitas sem dinamismo e não explodiria a dívida pública.
Contrário à mudança de meta, o economista-chefe da Warren Rena e ex-secretário de Fazenda de São Paulo, Felipe Salto, destaca que um ajuste dessa magnitude no alvo atual não resolveria o problema político que o governo quer endereçar. E pode criar outros.
“Se mudar a meta em meio ponto, o tiro vai sair pela culatra. Isso porque não adiantará nada em termos de evitar contingenciamento. Para evitar cortar uma vírgula que seja, como disse o presidente Lula, a meta teria de ser bem mais larga”, afirmou ao JOTA. “A meta zero depende de receitas volumosas e medidas ainda em tramitação, com incerteza sobre sua capacidade efetiva de geração de caixa. Isso não é motivo, contudo, para mudar a meta. Se as receitas não vierem, acionam-se os gatilhos, vale dizer, com efeito para fev/25, no caso do artigo 167-A, e jan/26, no caso do limite de crescimento de gasto menor”, completou.
Outro ponto importante a se considerar é que a mudança em si faria o mercado automaticamente rever para pior seus cenários, como mostra pesquisa da Warren. E pode ter implicações para futuros cortes de juros pelo Banco Central, como a própria autoridade monetária advertiu na última quarta.
Quem defende a mudança de meta, por outro lado, está preocupado em evitar cortes, no início de 2024, de investimentos e gastos sociais aprovados pelo Congresso e demandados pela sociedade nas urnas. E apontam que isso não seria sinônimo de irresponsabilidade.
Em artigo na Folha de S. Paulo, o economista André Roncaglia defende que “cortar investimentos e gastos essenciais em meio à desaceleração da atividade implica levar as contas públicas e a economia para o fundo do poço”, com consequências políticas negativas para o país.
Não é uma decisão fácil e nem uma história de vilões ou heróis, pois o tema é complexo e tem diversas implicações. Mas é uma história de planejamento falho e mal executado. A postura errática do governo nesse tema é um equívoco e não ajuda a ninguém. Aprender essa lição é importante para a decisão que está para ser tomada.