Dia da Democracia no Brasil, em nome de todas as lutas

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Em razão dos graves ataques que o regime democrático brasileiro vem sofrendo, surgiram propostas muito bem-vindas de se instituir uma data para a defesa da democracia no Brasil. As mais conhecidas são a da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a do IVH – Instituto Vladimir Herzog.

A primeira foi discutida e proposta em setembro deste ano e defende que o Dia da Democracia no Brasil deve ser comemorado em 5 de outubro, data em que foi promulgada a Constituição brasileira da 1988. A segunda foi encampada pela senadora Eliziane Gama, que fez constar do relatório final da CPMI – Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – relativa aos ataques de 8 de janeiro de 2023, uma proposta de projeto de lei que institui o dia 25 de outubro, data do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, como Dia Nacional de Defesa da Democracia.

A senadora, a quem cumprimentamos pela firmeza na condução dos trabalhos e pela relevante iniciativa, justifica a data com o fato de que ela já era comemorada informalmente, inclusive em sessões e discursos realizados no Congresso Nacional. Realmente, o assassinato brutal do jornalista é sempre lembrado no País e, com essa memória, faz-se a defesa da democracia. Mas esse tipo de evento também ocorre por ocasião dos igualmente brutais assassinatos de outras vítimas mais conhecidas, como os parlamentares Carlos Marighella e Rubens Paiva, a camponesa Margarida e a vereadora Marielle.

O presidente do IVH, por sua vez, justifica o 25 de outubro porque a morte de Herzog, em 1975, contribuiu fortemente para o “ocaso da ditadura que recaía sobre o país desde 1964”, o que também é verdade. Nesse mesmo período e na mesma cidade de São Paulo, entretanto, muitos eventos contribuíram para a tão demorada e ainda incompleta transição da ditadura para a democracia. Tivemos, por exemplo, o Ato-Ecumênico na Catedral da Sé, em resposta ao assassinato de Alexandre Vannuchi Leme, aluno da Geologia da USP, em 1973, e a Missa por Frei Tito, em 1974, quando em vez de  denunciar os assassinatos e desaparecimentos por bilhetes de mão em mão, boca a boca e em cartazes nas Igrejas e corredores das universidades, passou-se a falar em voz alta e a gritar coletivamente os nomes das vítimas. Portanto, em plena ditadura, centenas de jovens e adultos vieram a público pedir o fim daquele regime e suas mazelas. Esses eventos são lembrados e celebrados há 50 (cinquenta) anos. Tivemos ainda os bárbaros assassinatos dos operários Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976, e Santo Dias, em outubro de 1979. O assassinato de Fiel Filho é considerado um divisor de águas na necropolítica ostensiva adotada pela ditadura militar e o de Santo Dias reúne multidão na periferia, todos os anos, para não deixar apagar a sua memória.

E por que falarmos apenas de eventos ocorridos no “ocaso da ditadura”? Por que não escolher como símbolos da defesa da democracia os milhares de camponeses que tombaram na luta pela terra, de indígenas dizimados e escorraçados desde o início do regime? Ou os jovens estudantes e jornalistas que ocuparam as ruas desde 1964 até o AI5, em 1968, e que depois, na clandestinidade, foram perseguidos, covardemente assassinados e tiveram seus corpos desaparecidos?

E por que não escolher como símbolos as vítimas do período democrático ainda tão fragilizado pela repetição das violações de direitos? Quanto a estas vítimas, é impossível não falar dos milhares de jovens pretos e pobres, que seguem sendo assassinados, e de defensores de direitos humanos, como Chico Mendes, Mãe Bernadete, Bruno Pereira e Dom Phillips.

Na verdade, é impossível eleger, entre tantas vítimas, qual morte seria mais simbólica para ser fixada como dia de defesa da democracia. Por outro lado, a instituição de uma data tão necessária quanto esta é uma medida importante demais para ser personificada. Vladimir Herzog e sua família merecem todo nosso respeito e carinho, como todas as outras vítimas e seus familiares, mas é preciso que a instituição dessa data seja uma resposta coletiva aos atentados à democracia.

Tomemos como parâmetro, por exemplo, o Dia Internacional da Democracia fixado pela ONU – Organização das Nações Unidas – em 15 de setembro, que é a data da assinatura da Declaração Universal da Democracia, por 128 países, em 1997. Ou seja, não se elegeu como símbolo uma violação específica, mas uma carta de princípios. É o que representa a nossa Constituição Cidadã.

Nossa Constituição é a síntese de todas as lutas de milhares de brasileiras e brasileiros que, desde 1964 e até os dias de hoje, são perseguidos, machucados seriamente, torturados e assassinados. É o símbolo maior da luta pela democratização. Ela garante o direito à moradia, ao trabalho decente, à não discriminação baseada na cor da pele, etnia, orientação sexual, etc. Garante o direito à terra para plantar, à alimentação, à saúde e à educação universal e gratuita, entre tantos outros direitos, pelos quais tantas pessoas morreram e ainda morrem lutando.

Sabemos que a proposta do IVH é endossada por dezenas de entidades e grandes personalidades públicas. Mas temos certeza de que tais apoios foram dados pela importância e oportunidade da iniciativa, porém sem o conhecimento dessas reflexões e da alternativa contida na proposta da SBPC.

Sugerimos à douta senadora e a parlamentares comprometidos com essa causa que levem em consideração a fixação do dia 5 de outubro, como o Dia Nacional de Defesa da Democracia.