Em 1943, quando se desenvolvia a luta dos pracinhas da FEB na Itália, alguns cientistas norte-americanos reunidos no laboratório secreto de Los Alamos, separados do mundo exterior e sem contatos com as suas famílias, cercados por uma rede militar do serviço de contra-espionagem, aprofundavam as pesquisas de Joliot e de Fermi para descobrir a bomba atômica. Oppenheimer chefiava a equipe de físicos abnegados que tinham abandonado as suas Universidades para, num esforço voluntário de mobilização nacional, servir à pátria e defender a civilização ocidental humanista autêntico. Era um estudioso do grego e do sânscrito, espírito criador e foi escolhido pelo presidente Roosevelt pelas suas convicções democráticas e por estar afastado de qualquer veleidade de implantação de um comando tecnocrático nos Estados Unidos.
Sob sua orientação vigilante e incansável, construiu-se o laboratório de Los Alamos e iniciaram-se e prosseguiram, por dois anos, os trabalhos da equipe que descobriu a bomba atômica e permitiu a sua fabricação, acelerando assim o fim do segundo conflito mundial. O Dr. Oppenheimer tornou-se conhecido como o pai da Bomba A.
Terminada a guerra, os mestres de Los Alamos, sentindo toda a responsabilidade que lhes incumbia como criadores. Dentro do clima de histeria da bomba que destruíram Hiroshima e Nagasaki, voltaram às suas atividades normais no magistério e na pesquisa teórica, realizando um sincero esforço no sentido de evitar que fosse necessário utilizar em conflitos futuros, armamentos nucleares que ameaçariam a própria manutenção da vida no globo terrestres. Liderados pelo próprio Einstein, procuraram os cientistas evitar a aceleração da corrida armamentista no período inicial da guerra fria e, neste sentido, o conselho incumbido de dirigir as pesquisas relativas às armas nucleares então presidido por Robert Oppenheimer manifestou-se contra a realização ode um programa de urgência para a descoberta e a fabricação da bomba de hidrogênio.
Em 1964, no auge do movimento anticomunista liderado pelo senador Mac Carthy, uma comissão de investigação foi constituída para apurar a conduta do pai da bomba atômica e decidir sobre a renovação do “atestado de segurança” que lhe fora concedido para encaminhar e dirigir as pesquisas estratégicas então existentes, pressionada por elementos militares e incentivada por alguns cientistas invejosos ou recalcados, a comissão, embora reconhecendo a lealdade de Oppenheimer, concluiu que não deveria continuar no exercício das suas funções oficiais. A decisão tomada, após mais de cem horas em que foram ouvidos os diplomatas, militares, políticos e cientistas, se fundamentou na falta de entusiasmo do Dr. Oppenheimer pela fabricação da bomba H que talvez, com o seu apoio irrestrito, pudesse ter sido descoberta alguns anos mais cedo. O Departamento de Estado, após tentar manter o sigilo do processo, sentiu-se obrigado, diante das declarações dos advogados de Oppenheimer, a publicar as notas taquigráficas dos trabalhos da comissão.
A leitura das 992 páginas do relatório da comissão de inquérito, em que a ironia das circunstâncias se torna algumas vezes irritante, sugere as contradições do homem do nosso tempo, quando, em matéria essencialmente técnica, o governo dos Estados Unidos processa aquele que construiu a bomba atômica por não ter contribuído suficientemente para a construção da bomba de hidrogênio. O clima retratado no documento oficial e que se sente nos depoimentos das testemunhas tem o caráter macabro da Santa Inquisição e lembra a justiça dos tempos medievais.
O decurso do tempo e a reabilitação de Oppenheimer, dez anos depois, pelo presidente Kennedy reabriram o debate a respeito do famoso processo e permitiram que Jean Villar e Heinar Kipphardt transformassem o “dossier Oppenheimer” numa peça de teatro que se afirma com sucesso em diversos palcos europeus, na França, na Alemanha e na Bélgica.
A peça conserva com a máxima fidelidade a verdade histórica do processo, reconstruindo o clima autêntico em que os fatos se passaram na sala de audiência da Constitution Avenue em que os juízes se reuniam com a presença de energia atômica, funcionando como promotor, e do defensor de Oppenheimer.
A comissão de inquérito penetra nos meandros da vida particular e até afetiva do cientista, tirando-lhe toda possiblidade de uma esfera própria de autonomia. Revela o homem totalmente enquadrado na máquina estatal do Estado policial que Orwells e Huxley descreveram como o mundo de amanhã.
Por outro lado, o processo lembra o de Kafka por criar uma responsabilidade objetiva, independentemente da prática de qualquer ato específico. Um dos acusados de Oppenheimer é o seu colega Teller, o descobridor da bomba de hidrogênio, que alega não entender com clareza as atitudes do pai da bomba atômica, julgando a sua conduta “confusa e complicada”. E Oppenheimer foi condenado porque um outro cientista não conseguia entende-lo.
O processo Oppenheimer lembra a representação teatral da obra de Koestler – O zero e o Infinito, que por sua vez evocava os famosos processos de Moscou. Em ambos os casos, sacrifica-se o indivíduo à coletividade e conceitua-se como crime a imperfeição técnica e a divergência quanto a tipos de equipamentos militares.
Já se comparou o processo Oppeheimer ao caso Dreyfus, mas talvez fosse mais acertado entende-lo como o problema do cientista moderno, ou seja, um novo processo de Galileu. Ou mesmo uma réplica ao processo de Sócrates.
Verificamos que, em certos momentos, tanto no Ocidente como no Oriente, a justiça perde as suas exatas dimensões quando inclui no rol dos crimes apreciações exclusivamente técnicas sobre questões científicas.
Por outro lado, a liberdade perde em essência quando é recusada a alguns em virtude das posições que ocupam na vida do país. Não é possível que o desenvolvimento tecnológico implique em restrições à liberdade de pensamento e de participação na vida política para aqueles que colaboram nos grandes trabalhos científicos vinculados à segurança nacional.
Todo o problema da responsabilidade nacional e internacional do cientista, do seu engajamento, da sujeição de sua vida particular aos superiores interesses do Estado se apresenta em cores vivas e densas no decorrer do drama de Oppenheimer. Surge, em particular, a indagação muito oportuna quanto à possibilidade e à licitude de apreciar situações do passado com critérios atuais, julgando, sob o prisma da guerra fria entre Estados Unidos e Rússia, comportamentos de 1945 que então se enquadravam perfeitamente no clima de aliança existente entre o Ocidente e o Oriente contra o Eixo.
Raramente a defesa do advogado assume o caráter patético das palavras de Garrison, defensor de Oppenheimer, quando em trecho extraído das notas do processo, afirma que, em 1954, não podemos condenar um homem alegando as suas amizades de 1936 e prossegue lembrando que o processo do cientista é o da própria democracia norte-americana, não cabendo a América instaurar um regime policial do medo, nem devorar os seus próprios filhos.
O processo Oppenheimer é um pouco o processo da democracia. Nos momentos de cansaço e de veleidades ditatoriais – que periodicamente sofrem as democracias, pretendendo substituir o racional pelo místico, o filme sobre Oppenheimer constitui um lembrete oportuno das distorções que o regime pode sofrer e das necessidades de evita-las e de corrigi-las.
O Brasil pode agora ver o filme do processo Oppenheimer, que constitui uma densa tomada de consciência de algumas das dificuldades que ameaçam a integridade das democracias modernas e o senso de justiça, sem o qual nenhum regime autêntico pode subsistir.