Arbitragem no mercado de apostas: integridade em risco

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O mercado brasileiro de apostas esportivas vive uma transformação acelerada. Em meio a esse cenário de crescimento, ainda que o mercado regulado esteja prestes a completar seu primeiro ano, já são diversos os desafios enfrentados pelas casas de apostas, entre eles, a prática da arbitragem ou surebet.

Embora não seja vedada em lei, é proibida pela grande maioria das bets, cuja consequência é limitação, suspensão e bloqueio definitivo da conta do usuário infrator. Algumas decisões judiciais, no entanto, vêm considerando que tais penalidades seriam abusivas e condenando as empresas por danos morais, o que é prejudicial ao mercado, fomentando o comportamento lesivo de usar as bets como forma de investimento e não de entretenimento.

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O conceito e a profissionalização da arbitragem

Por definição legal, aposta é “o ato por meio do qual se coloca determinado valor em risco na expectativa de obtenção de um prêmio”, ou seja, pressupõe incerteza quanto ao resultado do evento, justificando o risco assumido pelas partes. Esse risco é componente indispensável para caracterizar a atividade como jogo ou aposta. Mais do que isso, aposta é lazer.

No entanto, a arbitragem elimina (ou pretende eliminar) esse elemento. Trata-se de uma estratégia em que o usuário realiza apostas simultâneas em todos os desfechos possíveis de um evento esportivo, de forma calculada, para assegurar retorno financeiro positivo, independentemente do resultado. Essa conduta, em tese, neutraliza o risco e descaracteriza a lógica do contrato de aposta, transformando-o em operação de investimento. Fala-se em tese pois não se trata de cálculo infalível e o apostador pode sofrer grandes perdas.

Ferramentas tecnológicas, como comparadores de odds, softwares de automação e bots de alta velocidade, potencializaram essa prática, tornando-a acessível e sofisticada. Apostadores profissionais organizam-se em redes sociais, utilizam múltiplas contas e até VPNs para burlar sistemas de controle, transformando o que antes era uma conduta pontual em atividade sistemática e profissionalizada.

Além de afastar a função recreativa, a prática afronta princípios estruturantes do ordenamento, como a boa-fé objetiva e seus deveres anexos previstos nos arts. 113 e 422 do Código Civil[1]. Doutrina estrangeira qualifica essa conduta como “uso desviado do mercado”, e não como participação legítima nele, justamente por comprometer a integridade do sistema de apostas.

Termos e condições das operadoras: a resposta contratual à manipulação

Segundo o artigo 46 da Portaria 1.231 de 31.07.24, da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF), o operador deve elaborar e manter termos e condições claros e objetivos, incluindo regras para suspensão, limitação e encerramento de conta. Já o artigo 24 estabelece que é dever do apostador ler e, conforme sua conveniência, aceitar ou não os termos e condições.

Ou seja, é permitido aos operadores inserir políticas que prevejam penalidades ao usuário. Cabe ao apostador, aceitá-las ou não, conforme a sua conveniência. Não concordando com o regramento daquela bet, pode ele buscar uma das outras mais de 170 marcas disponíveis.

Casas de apostas que atuam no Brasil, como Betano, Sportingbet, Bet365, Blaze e 7KBet, por exemplo, possuem cláusulas que vedam o uso de arbitragem (manipulação ou aproveitamento indevido de discrepâncias de odds; uso de automação ou softwares não autorizados para análise de mercados; realização de apostas contraditórias ou simultâneas destinadas a eliminar risco; participação em esquemas de colaboração ou conluio).

Essas diretrizes refletem padrão internacional de integridade. Em mercados maduros, como Reino Unido, Espanha e Itália, a resposta ao avanço da arbitragem é rigorosa. Casas de apostas limitam, suspendem ou encerram contas com comportamento considerado abusivo. A Gambling Commission do Reino Unido estabelece diretrizes rígidas para prevenção de manipulação de odds e arbitragem abusiva, incluindo auditorias regulares e penalidades severas[2]. Na Espanha, a Dirección General de Ordenación del Juego (DGOJ) exige que operadores reportem atividades suspeitas e implementem sistemas de monitoramento automatizado[3].

A International Betting Integrity Association[4] (IBIA) promove o compartilhamento de informações sobre padrões suspeitos e práticas manipulativas entre operadores globais, fortalecendo a cooperação internacional. Ferramentas de detecção de padrões atípicos, inteligência artificial e educação dos apostadores são utilizadas para mitigar riscos e preservar a integridade do setor. Bancos de dados compartilhados entre operadores ajudam a identificar apostadores reincidentes e padrões de comportamento suspeito, protegendo o equilíbrio do mercado e a experiência dos apostadores recreativos.

Decisões judiciais e os desafios para o Brasil

Em maio de 2025, duas decisões judiciais[5] entenderam que as cláusulas que preveem a limitação e o bloqueio de contas de usuários seriam nulas, pois contrárias ao artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, condenando-se as casas de apostas ao pagamento de danos morais. Essas decisões acarretaram – e ainda fundamentam – uma série de demandas judiciais.

Em contrapartida, decisões judiciais recentes têm sido mais favoráveis às operadoras de apostas esportivas em disputas sobre bloqueios e restrições de contas, contanto que estejam claramente estipuladas nos termos e condições e usuário seja previamente informado sobre a restrição.

Ainda é muito cedo para falar em entendimento consolidado. Mas é fundamental validar cláusulas que estabeleçam limitações e bloqueios de contas para usuários que utilizam arbitragem.

Mais do que isso, há um enorme desafio que é tratar a arbitragem não como infração isolada, mas como ameaça sistêmica à integridade do modelo regulado. A dimensão econômica do setor amplia a gravidade do problema, exigindo respostas firmes e coordenadas entre operadores, regulador e Poder Judiciário.

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A tendência de profissionalização da arbitragem pode gerar impactos relevantes, como volatilidade artificial das odds, aumento de litígios, desequilíbrio competitivo e instabilidade econômica.

Conclusão

A arbitragem, embora não seja ilegal, desafia a essência da aposta e coloca em risco a integridade e a sustentabilidade do mercado de apostas esportivas. O Brasil, diante de um novo marco regulatório, precisa adotar medidas firmes e coordenadas para coibir práticas manipulativas e proteger o ambiente competitivo e recreativo que justifica a existência do setor. O Poder Judiciário não pode se coadunar com essa prática, sendo essencial uma postura firme, para evitar que a prática se propague e ainda se torne mais uma vertente da chamada indústria do dano moral.


[1] Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

[2] https://www.gamblingcommission.gov.uk/licensees-and-businesses/guide/the-gambling-commissions-betting-integrity-decision-making-framework

[3] https://www.pwc.es/es/newlaw-pulse/entretenimiento-medios/en-vigor-nuevo-modelo-datos-dgoj.html

[4] https://ibia.bet/

[5] TJSP – Proc. nº 1077331-95.2024.8.26.0100 e TJMG – Proc. nº 5009175-47.2025.8.13.0024