Qualidade regulatória na regulação profissional: o caso do Sistema Crea/Confea

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Levantamentos recentes indicam uma queda consistente na formação de engenheiros no Brasil. Entre 2015 e 2023, o número de estudantes matriculados em cursos de engenharia diminuiu cerca de 25%, passando de pouco mais de 1 milhão para aproximadamente 763.000, segundo dados divulgados pelo Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Juliboni, 2025). Esse movimento agrava um quadro estrutural já desfavorável: o estoque de engenheiros no país é significativamente inferior ao observado em economias comparáveis. Enquanto Estados Unidos e Japão contam com cerca de 25 engenheiros por mil habitantes, o Brasil registra apenas 6. Mesmo entre países do BRICS, o desempenho brasileiro é inferior, na Índia são 15 e, na China, 13 engenheiros por mil habitantes (Juliboni, 2025).

Esse cenário alimenta, com frequência, alertas sobre um possível “apagão de engenheiros”, com impactos diretos sobre a capacidade de execução de investimentos em infraestrutura[1]. Ao mesmo tempo, estudo do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea), realizado pela Quaest, evidencia uma demanda elevada no mercado de trabalho, na medida em que 92% dos profissionais encontram-se em exercício e 78% atuam em sua área de formação, caracterizando um mercado aquecido. Essa combinação sugere que a restrição na oferta de engenheiros pode criar gargalos na implementação de projetos estratégicos, com efeitos adversos sobre a trajetória de crescimento econômico no médio e longo prazo.[2]

A Constituição Federal de 1988 reconhece a liberdade profissional como regra, admitindo restrições apenas quando justificadas pelo potencial lesivo da atividade. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme nesse sentido. No julgamento do RE 414.426, interposto em mandado de segurança preventivo e sob Relatoria da Ministra Ellen Gracie (DJe de 10-10-2011), o Plenário afastou a obrigatoriedade de registro na Ordem dos Músicos do Brasil, justamente por não identificar risco suficiente a legitimar a restrição.

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No caso da engenharia, entretanto, o exercício profissional está legalmente condicionado ao registro em Conselho Regional de Engenharia (Crea), nos termos do artigo 6º da Lei 5.194/1966. Trata-se, portanto, de uma regulação profissional formalmente instituída, anterior à Constituição, mas recepcionada pelo ordenamento constitucional em razão da natureza da atividade.

O Sistema Crea/Confea exerce prerrogativas típicas de autoridade pública, ainda que não integre a administração direta ou indireta. Compete-lhe habilitar profissionais, normatizar práticas profissionais, fiscalizar o exercício da atividade e aplicar sanções, inclusive a cassação do registro, com efeitos diretos sobre a possibilidade de exercício da profissão.Trata-se, portanto, de um regime regulatório com impacto econômico e social relevante.

No âmbito das obras públicas de infraestrutura, a atuação do Sistema Crea/Confea sempre foi especialmente sensível. A exigência de qualificação técnica comprovada por meio de Anotações ou Atestados de Responsabilidade Técnica (ART) historicamente funcionou como uma barreira relevante à entrada de novas empresas em determinados mercados. A Lei nº 14.133/2021 buscou racionalizar esse cenário ao estabelecer parâmetros mais claros e proporcionais para a exigência de atestados, ainda que preserve exceções relevantes (art. 67[3]).

Não há dúvida, portanto, de que o Sistema Crea/Confea exerce função regulatória relevante. A questão central passa a ser a qualidade com que essa regulação vem sendo exercida.

Levantamento realizado no âmbito de estudo do IPEA sobre qualidade da regulação no Brasil identificou que, entre 2018 e 2024, não foi localizada nenhuma Análise de Impacto Regulatório (AIR) produzida pelo Confea[4], tampouco por outros conselhos profissionais classificados como reguladores pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC)[5]. Também não foram encontrados relatórios formais de dispensa de AIR ou de Avaliação de Resultado Regulatório (ARR).

A AIR não é apenas uma exigência legal prevista no artigo 5º da Lei nº 13.874/2019, mas um instrumento essencial de boa governança regulatória. Em um contexto marcado por rápidas transformações tecnológicas, desafios associados às mudanças climáticas e crescente complexidade dos projetos de infraestrutura, decisões regulatórias que afetam o exercício da engenharia deveriam ser precedidas de análise sistemática de dados, avaliação de alternativas e mensuração de impactos econômicos, sociais e concorrenciais.

A ausência de AIR e de ARR, e de registros formais de dispensa dessas ferramentas de boas práticas regulatória pode indicar duas hipóteses igualmente preocupantes: ou o Confea não realiza análises de impacto regulatório antes de adotar decisões regulatórias de grande relevância econômica nem sequer avalia regulamentações antigas que seguem impondo barreiras à entrada e limitações para o exercício da engenharia, ou tais análises não são tornadas públicas, comprometendo a transparência e a accountability da atividade regulatória. Em ambos os casos, o padrão observado está distante das diretrizes que o próprio Estado brasileiro busca consolidar, como aquelas previstas na Estratégia Regula Melhor, instituída pelo Decreto nº 12.150/2024.

Esse diagnóstico, é verdade, não é exclusivo do Sistema Crea/Confea. Outros conselhos profissionais também exercem competências regulatórias com prerrogativas típicas do poder público, como a cobrança de anuidades de natureza parafiscal, o recurso à execução fiscal em caso de inadimplência, a fruição de imunidade tributária e a submissão ao controle dos Tribunais de Contas, além de impactarem diretamente mercados e o exercício profissional. Levantamento realizado pelo Tribunal de Contas da União, no âmbito do Acórdão nº 395/2023, evidencia que a incorporação de instrumentos de racionalização regulatória ainda é incipiente nesse universo institucional: apenas 4% dos conselhos de fiscalização profissional declararam possuir normativo interno que regulamente a análise de impacto regulatório, sendo que, dentre estes, somente um apresentou comprovação efetiva, e apenas 2% afirmaram já ter realizado alguma AIR, sem que houvesse demonstração documental correspondente.[6] Diante desse quadro, e considerando o elevado poder regulatório exercido por esses Conselhos, é razoável sustentar que as mesmas preocupações que orientam a regulação estatal, como o uso de evidências, a proporcionalidade, a transparência e a participação social, devem igualmente orientar a regulação profissional.

Por se tratar de uma regulação exercida por pares, seria esperado que esse modelo fosse ainda mais responsivo, aberto à participação e orientado à excelência técnica. Conselhos profissionais poderiam desempenhar papel estratégico na articulação com o governo sobre inovação, sustentabilidade e formação profissional; na busca por benchmarks internacionais; na coleta e análise de dados sobre os efeitos de exigências burocráticas sobre custos, concorrência e oferta de profissionais; e na avaliação criteriosa dos impactos de decisões disciplinares sobre indivíduos e sobre a própria reputação da profissão.

Na prática, contudo, a atuação tem se concentrado na arrecadação de anuidades, na imposição de barreiras de entrada, na oferta de benefícios acessórios e na aplicação de sanções. Esta última, em particular, tem revelado fragilidades preocupantes. Em 2025, o Crea de Minas Gerais cassou registros profissionais de engenheiros, inclusive vinculados a outras regionais, em razão do desastre de Brumadinho, embora a apuração da responsabilidade cível e criminal ainda esteja em curso, sem conclusão. Nos processos administrativos, não se verificou a construção de fundamentação técnica consistente sobre incapacidade profissional ou violação de padrões técnicos, tendo a motivação se apoiado predominantemente em narrativas midiáticas.

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Esse tipo de atuação fragiliza a credibilidade institucional do sistema e afasta a regulação profissional de sua finalidade primordial que é promover qualidade, segurança e excelência técnica, com base em evidências, observância do devido processo e responsabilidade regulatória. Torna-se, portanto, necessária a revisão do modelo de regulação profissional no país, inclusive no campo da engenharia, de modo a mitigar custos decorrentes de exigências burocráticas desproporcionais, bem como perdas econômicas e institucionais associadas à omissão decisória ou a morosidade regulatória.


[1]  JULIBONI, Márcio. Apagão de engenheiros compromete obras e projetos estratégicos no Brasil. Veja, 26 set. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/apagao-de-engenheiros-compromete-obras-e-projetos-estrategicos-no-brasil/.

[2]  CONSELHO FEDERAL DE ENGENHARIA E AGRONOMIA (CONFEA). Mini-Censo CONFEA 2024. 2025. Disponível em: https://www.confea.org.br/midias/uploads-imce/Pesquisa_Quaest_Confea_0.pdf.

[3] A nova lei limita a exigência de atestados às parcelas de maior relevância ou valor significativo do objeto, definidas como aquelas cujo valor individual corresponda a, no mínimo, 4% do valor estimado da contratação, vedando a exigência de comprovação superior a 50% dessas parcelas. Note-se que para contratações que não envolvam obras, a legislação admite meios alternativos de demonstração de capacidade técnica para além dos atestados técnicos. Soma-se a isso a abertura ao mercado internacional, ao permitir que profissionais estrangeiros realizem o registro apenas no momento da assinatura do contrato, e não na fase de apresentação de propostas, reduzindo custos de transação e ampliando a competitividade.

[4] PESSÔA VALENTE, Patricia. A qualidade da regulação no Brasil. Passado, presente e futuro. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2025. No prelo.

[5] MDIC/PRO-REG fez levantamento em que foram identificados 237 órgãos e entidades reguladores no âmbito da administração pública federal, nos termos do estudo de Cunha Junior (2024). O estudo, contudo, apresenta limitações, como a falta de uniformidade na escala de análise (ministérios, secretarias ou departamentos) e a ausência de alguns reguladores que, embora não listados, já publicaram relatórios de AIR.

[6]  BRASIL. Tribunal de Contas da União (TCU). Acórdão nº 395/2023, Relator: Augusto Sherman. Processo nº 014.349/2022-1, sessão de 08 de março de 2023. Disponível em: Pesquisa textual | Tribunal de Contas da União.