A incompletude do instrumental do Direito Administrativo

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Imagine hipótese nada incomum no dia a dia da Administração Pública. Particular, prestador de serviços essenciais à Administração, incorre em hipótese de inexecução contratual. O que fazer?

Qualquer manual tradicional de licitações teria uma resposta pronta para isso: constatado o inadimplemento absoluto, deve-se realizar a rescisão contratual e a Administração estaria liberada para realizar a contratação do remanescente, conforme o Art. 90, §7º da Lei 14.133/2021.

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Não se pode esquecer, porém, que se está no Direito Administrativo do século 21, em que a potestade de império foi arrefecida. O que se espera é que seja dada ao particular a possibilidade de contraditar essa rescisão, seja para dizer que não descumpriu, seja para dizer que houve um fato de terceiro ou extraordinário que impedia o adequado cumprimento. Ocorre que, o transcurso regular de um processo administrativo, seguindo o devido processo legal, pode ser incompatível com a urgência de certas situações.

O leitor mais apressado a esta altura deve considerar que a resposta já está dada pela tradicional caixa de ferramentas: o amplo poder cautelar da Administração Pública, à luz da teoria dos poderes implícitos. Essa possibilidade de agir cautelarmente trata-se de verdadeiro permissivo normativo há muito reconhecido, em especial no artigo 45 da Lei 9.784/1999, autorizando o Estado a atuar de forma célere diante de situações urgentes, garantindo a continuidade dos serviços públicos e a preservação do interesse coletivo.

Ao se conferir determinada competência a um órgão estatal, presume-se que este está autorizado a utilizar todos os meios necessários para garanti-la, desde que observados os limites da razoabilidade e proporcionalidade, e sem invadir a competência de outros órgãos.

Cautelaridade está associada à garantia do não perecimento do direito, como medidas de apreensão de bens, interdição de estabelecimentos, afastamento preventivo, suspensão de atos administrativos, embargos de obras, indisponibilidade de bens e suspensão da venda de mercadorias.

Porém, como fica a hipótese da reflexão inicial desse texto? Há sentido falar em rescisão cautelar de um contrato? Ao que parece não. O que a Administração necessita, neste caso, não é propriamente de uma medida cautelar, mas de uma tutela provisória efetivamente satisfativa, que permita extinguir o contrato original e assinar novo contrato. Nem se diga que a irreversibilidade da medida impediria a concessão da tutela provisória, uma vez que há muito se flexibiliza[1] a disposição equivalente do art. 300, §3º do CPC/15.

A verdade é que a cautelaridade não foi prevista para este caso e não há um outro instrumento facilmente empregável na caixa de ferramentas do Direito Administrativo. Nesse contexto, surge a seguinte indagação: quando a Administração necessita de uma tutela satisfativa, deve recorrer ao Judiciário ou pode agir diretamente?

De modo algum a solução pode desprezar a ideia de que a atuação administrativa deve se pautar no devido processo legal. Reconhece-se o processo administrativo como verdadeiro instrumento democrático de legitimação, controle e eficiência da atividade estatal, inserindo-se no fenômeno da processualização do direito administrativo. No entanto, isso não pode significar que a Administração deva esperar o transcurso do processo rescisório para, após o seu final, assinar eventual remanescente contratual com um segundo colocado.

É preciso que se perceba que a cautelaridade é, na verdade, uma simples manifestação do poder que tem a Administração de impor tutelas provisórias em seu próprio processo.

A fundamentação para isso não é difícil de se buscar, seja por meio da aplicação subsidiária e supletiva do Código de Processo Civil, conforme art. 15 da codificação, seja com base no próprio art. 21, parágrafo único da LINDB, segundo o qual decisões administrativas que importem invalidação de contratos devem indicar condições para sua operabilidade, sem impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.

Essa diretriz aplica-se não apenas às hipóteses de nulidade, mas a todas as patologias contratuais, inclusive nos casos de rescisão unilateral pela Administração, cujo processo extintivo não pode ocasionar ainda mais prejuízos à Fazenda.

A solução mais tradicional seria exigir que a Administração fosse ao Judiciário que, em um cenário de serviço essencial e de indícios de inadimplemento, provavelmente conferiria a tutela antecipada. Em não sendo confirmada, a consequência para a Administração seria a indenização ao final da cognição exauriente.

De todo modo, consequência diferente não poderia ocorrer no processo administrativo. A mesma lógica de temporariedade da tutela, seja cautelar, seja satisfativa, se faz presente.

Ainda no processo administrativo seria indispensável a instauração e término do devido processo contra o contratado original para assegurar a ele o exercício do contraditório e da ampla defesa, de modo que, ao final, se ficar comprovado que não deu causa à rescisão, a própria Administração deve responder pelos danos causados e por lucros de que o contratado foi privado em razão da rescisão realizada e assinatura com eventual segundo colocado. A consequência seria exclusivamente patrimonial, como se daria no âmbito de eventual admissão na via administrativa.  Exigir a ida ao Judiciário seria apenas mais uma exigência procedimental sem maiores distinções práticas.

Nessa linha, diante do exemplo trazido, é necessário pensarmos uma tutela provisória em sentido amplo para a Administração, embora com a necessária ponderação, tendo em vista o risco de responsabilização futura, seja pela revogação da tutela em possível análise final, seja pela judicialização posterior. Trata-se, afinal, de risco inerente a qualquer tutela provisória, que busca salvaguardar outros bens relevantes ao interesse público.

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Em última análise, a constatação é tão evidente quanto incômoda: o Direito Administrativo continua tentando enfrentar problemas contemporâneos com um instrumental que já não mais corresponde à complexidade da rotina administrativa. Até que seja reconhecida essa incompletude estrutural, a Administração continuará a se socorrer de improvisações. A realidade já avançou; cabe ao Direito Administrativo acompanhá-la, rumo a um modelo verdadeiramente efetivo e sintonizado com a urgência dos desafios que se apresentam.

Ao cabo, parece que esqueceram um alicate da caixa de ferramentas…


[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 14, p. 75, 2001.