Os direitos dos pacientes devem ser considerados em sua plenitude no que se refere à introdução e ao uso da inteligência artificial na área da saúde. De um lado, direitos individuais associados à personalidade do ser humano, tais como privacidade, intimidade, proteção de seus dados pessoais, proteção da integridade física e mental, cuidado integral e centrado em suas necessidades.
De outro lado, direitos sociais e coletivos associados ao bem-estar físico, mental e social, tais como redução de riscos de doenças e outros agravos à saúde ou ainda a promoção, a prevenção e a recuperação da saúde.
A inteligência artificial vem ocupando cada vez mais espaço no dia a dia dos profissionais e gestores da saúde. Está cada vez mais presente em tecnologias voltadas a auxiliar os médicos e outros profissionais de saúde em atividades voltadas ao diagnóstico e ao tratamento de doenças, bem como à organização e gestão dos serviços públicos e privados de saúde.
Dispositivos médicos com IA já são capazes de oferecer serviços que auxiliam os profissionais de saúde em atividades de anamnese, na definição de hipóteses diagnósticas, na indicação de protocolos terapêuticos (exames, cirurgias, medicamentos) e também no acompanhamento terapêutico, entre outras. A IA também já auxilia gestores públicos e privados de serviços de saúde na organização de filas e na regulação de leitos hospitalares, por exemplo.
Até que ponto os pacientes estão conscientes desta nova realidade dos serviços de saúde e das novas tecnologias que auxiliam o seu médico de confiança? A proteção dos direitos dos pacientes exige, em primeiro lugar, uma ampla difusão aos pacientes de conhecimentos básicos sobre estas tecnologias e seus potenciais e usos. O letramento em saúde digital e nos usos da IA mostra-se estratégico para a proteção dos pacientes nesse novo cenário do cuidado em saúde.
A IA também está presente em softwares e serviços de tecnologia vendidos no mercado para oferecer dicas de bem-estar, orientações nutricionais e esportivas, cuidados voltados à saúde mental e espiritual, entre outros serviços com alto potencial de induzir comportamentos nas pessoas e nos pacientes.
Em um futuro não muito distante o paciente já terá acessível os mesmos serviços com IA que seus médicos usam para auxiliar no atendimento, o que pode representar riscos importantes. Uma coisa é o médico como supervisor humano da IA (preferencialmente um médico de nossa confiança); outra coisa, bem diferente, é um aplicativo com IA que diagnostica e faz hipóteses diagnósticas e propostas terapêuticas diretamente aos pacientes. Tal tipo de comercialização de IA será permitida?
Para que a sociedade e o Estado possam proteger adequadamente os direitos dos pacientes nesse novo cenário da saúde digital, alguns aspectos devem ser considerados. Destacarei aqui dois deles.
O primeiro diz respeito à construção de um ambiente confiável de desenvolvimento e uso da IA, por meio da difusão do conhecimento sobre o que é e o que faz a IA que está sendo utilizada. Nesse sentido, os gestores e os profissionais de saúde são peças estratégicas para que o uso da IA seja, de fato, um vetor de diferenciação do percurso terapêutico do paciente e para que o paciente tenha conhecimento de que a IA participou positiva ou negativamente do seu processo de cuidado.
Para tanto, os gestores e profissionais de saúde devem comunicar aos pacientes sobre a utilização de IA no atendimento, perguntar sobre o interesse do paciente na utilização da IA e compartilhar as informações pertinentes com os pacientes, de forma clara e transparente.
O segundo aspecto relevante a ser destacado, até pela natureza e forma de aprendizado da inteligência artificial, é a necessidade de se organizar um meio para que os pacientes sejam parceiros do desenvolvimento e do acompanhamento das tecnologias de IA que serão utilizadas no sistema de saúde.
Nesse sentido, a título de exemplo, vale observar a importância do paciente na produção de dados fundamentais para o aprendizado de máquina. Uma regulação estatal eficaz é fundamental para garantir, ao mesmo tempo, a proteção dos dados pessoais sensíveis dos pacientes e a possiblidade do uso de dados de saúde agregados e anonimizados para o desenvolvimento de novas tecnologias com IA.
Para que o equilíbrio entre direitos dos pacientes e desenvolvimento e uso racional e adequado da IA seja encontrado, é fundamental a participação ativa dos pacientes no processo de desenvolvimento e uso das tecnologias de IA. Até porque estas tecnologias serão desenvolvidas para melhorar o cuidado à saúde destes mesmos pacientes.
A regulação deve encontrar um caminho que possibilite que os pacientes compartilhem seus dados, de forma livre, consentida, esclarecida, segura e anonimizada, para auxiliar no desenvolvimento da IA. Em contrapartida, deve-se garantir que estes mesmos pacientes recebam de volta os benefícios que estas novas tecnologias trarão, por meio de garantias de acesso a elas e de participação no acompanhamento de sua evolução e de seus usos.
Definir os papéis e responsabilidades de gestores, profissionais de saúde e pacientes no ambiente da governança da IA é estratégico para a criação de um ambiente apto a favorecer a inovação e o desenvolvimento de tecnologias locais de IA com alto potencial de impacto positivo na promoção, proteção e recuperação da saúde.