Reequilíbrio no contratos de concessão: o barquinho em apuros precisa desvirar

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Contratos de concessão, devido à sua natureza, são de longo prazo. Eles pressupõem a aplicação inicial de recursos financeiros intensivos, cuja amortização depende do tempo, por pressupor valores pagos pelos usuários dos serviços gerados. O prazo de uma concessão está relacionado à modicidade das tarifas, já que, quanto menor a duração, maior tendem a ser as tarifas exigidas. Tarifas exorbitantes, por sua vez, tornam inconveniente uma concessão.

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Assim, contratos de concessão não são de pronta entrega. Não se contratualiza uma rodovia como quem compra uma coxinha de frango na lanchonete. E o ingrediente tempo, nesse panorama, faz toda a diferença: o tempo abre-se à intercorrências e imprevisões.

Mal algum haveria nas vicissitudes temporais, se as cláusulas dos contratos fossem capazes de captá-las. A racionalidade humana, contudo, não costuma ter acerto nessa função, e ante a realidade que se impõe, os contratos falham. Para não ruírem, é preciso construir respostas para a sua sustentação.

A incompletude de contratos como os de concessão tem instigado especialistas brasileiros, sensíveis ao contexto contratual do País e ao acúmulo de frustrações que ele ostenta. Ao invés de apenas denunciar as falhas na execução de tais arranjos, reconhece-se que o problema subjaz em uma dimensão antecedente: a incapacidade intrínseca de os contratos de longo prazo atravessarem ilesos o mundo dos fatos.

É elucidativa, a respeito, a explicação que Marcos Nóbrega, Frederico Turolla e Rafael Véras fazem da teoria dos contratos incompletos.[1] Admitindo a superveniência de “cenários adversos” a um contrato longevo, os autores defendem a imprescindibilidade da “restauração da estabilidade contratual”, aludindo a reflexões criativas.

Por todas, chama a atenção o “problema do barquinho do Amyr Klink”, em que se narra a pretensão do navegador de atravessar o Atlântico Sul em um barco à prova de ondas, que não virasse. Para os engenheiros que ajudaram no projeto, tal aspiração seria inviável, e Klink teria sido convencido a conceber, não um barquinho que não virasse, mas um que, virando, pudesse “desvirar”. Tal proposta funcionou, e Amyr Klink foi o primeiro a atravessar o Atlântico Sul em um barco a remo.

Nas concessões, talvez a disciplina dos riscos represente um dos mecanismos mais evoluídos, até então, para dar conta das intercorrências a que tais contratos estão sujeitos. O regramento dos riscos seria capaz de “desvirar” os contratos, e a lógica funcionaria assim: são listados, em uma cláusula, os eventos que, mesmo afetando negativamente a execução do negócio, não disparariam qualquer resposta em socorro do concessionário — seriam os riscos alocados sob a responsabilidade dele, e, de outro lado, são listados eventos que, irrompendo-se, ensejariam algum tipo de resposta regulatória, levando, por exemplo, ao reequilíbrio contratual — seriam os riscos alocados ao poder público.

Mais do que diferenciar esses dois conjuntos de cláusulas (riscos do concessionário versus riscos do poder público), é essencial compreender os desdobramentos que proporcionam o andamento de um contrato como o de concessão. Para os riscos que são seus, o concessionário deve estimar a probabilidade de sua ocorrência futura, criando uma espécie de contingência que se refletirá no preço da sua proposta: “Se o barquinho virar, não vá buscar ajuda; você, concessionário, terá de dispor dos meios para desvirá-lo”. Por essa razão, diz-se que “os riscos são precificados”. Em contrapartida, para os riscos que não são seus, não é necessário prever contingências, e o contrato, se tais riscos ocorrerem, será reequilibrado: “Fique tranquilo, se o barquinho virar, o poder concedente providenciará uma solução”.

Tal mecânica é elegante e contribui para reduzir os custos de transação diante de um cenário adverso. Basta analisar a matriz de riscos e a regulamentação do contrato para se identificar o tratamento apropriado para a questão. Quando o “barquinho” vira por risco atribuído ao poder concedente, a expectativa é que ele será “desvirado”, mediante alguma ação regulatória.

Mas essa solução, que à primeira vista parece simples, faz emergir um ponto de alerta, ainda pouco evoluído na regulação brasileira. Sem embargo, não basta desvirar o barquinho nas intempéries. Isso precisa ser feito rápido, isto é, as medidas de reequilíbrio precisam ser implementadas com celeridade, para se evitarem sequelas graves ao fluxo de caixa contratual que possam pôr em xeque a continuidade dos serviços prestados. De fato, choques incisivos afetam, por exemplo, compromissos assumidos pelo concessionário junto a financiadores, tal como o índice de cobertura do serviço da dívida. Isso é um problema grave, pois pode disparar o vencimento antecipado da dívida, crítico para as concessões.

Em que pese, no entanto, a velocidade reclamada, os procedimentos de reequilíbrio enfrentam roteiro sinuoso, com a ativação de múltiplos órgãos. É comum se deparar, também, com dois espectros de análise: o “mérito”, de um lado — a confirmação da concretização de um risco fora da responsabilidade do concessionário. E a apuração dos impactos e o cálculo da resposta requerida, de outro. Quando ambos se fazem presentes, mais demorado é o processo, embora haja hipóteses menos problemáticas, quando em jogo, são colocados fatos incontroversos, a exemplo do incremento de tributos, a caracterizar “fato do príncipe”. Ou quando a questão de fundo, em outros momentos, já tenha sido superada. Nessas situações, como desvirar rapidamente o barquinho em apuros?

Apesar de a experiência prática ser pobre em referências, algumas soluções para o imbróglio vêm sendo intentadas. Destaca-se o conceito de “reequilíbrio cautelar” dos contratos de concessão, positivado na realidade do estado de São Paulo. A dinâmica envolvida é também elegante e deita raízes no poder geral de cautela da Administração Pública. Reequilibrar contratos agilmente dialoga, ainda, com valores jurídicos caros, como a continuidade da prestação de serviços relevantes, assim como a segurança jurídica. Respostas rápidas para o reequilíbrio, ademais, evitam represamento de passivos regulatórios e futuros sobressaltos das tarifas, dado o efeito do “dinheiro no tempo”.

Dado esse contexto, a Resolução nº 19, da Secretaria de Parcerias em Investimentos de São Paulo, de 29/5/23, fixa critérios lógicos para o dito reequilíbrio cautelar e prevê a limitação da medida a 80% do impacto estimado do desequilíbrio. Não há, portanto, um cheque em branco para o concessionário beneficiário da solução, o qual terá o ônus de demonstrar a conveniência, bem como o montante considerado na recomposição. Ao final, eventuais saldos, para mais ou menos, serão depurados no processo ordinário, eliminando-se possíveis injustiças ou distorções.

Em certa medida, a ideia do reequilíbrio cautelar para contratos já havia sido conjecturada, sem muito sucesso, no bojo da pandemia de Covid-19, que pôs à prova, diversos setores regulados no Brasil. Episódios de desequilíbrios sistêmicos e incisivos, como tal, impõem ações ágeis para evitar o acirramento dos prejuízos, os quais se desdobram sobre um número significativo de contratos e de pessoas.

Por isso, vale o esforço para se consolidar o instituto, a fim de que ele se torne, de uma vez por todas, realidade em âmbito nacional. Veja-se, nessa linha, os temores quanto à Reforma Tributária em curso no País, cujas resultantes são incertas, mas que, conforme o caso, podem ferir o fluxo de caixa de projetos de setores essenciais da infraestrutura. Para essas ocorrências, a retratar “fato do príncipe”, o ordenamento já consagra o direito ao reequilíbrio dos contratos. Mas passaria a haver um esforço de priorização à restauração da estabilidade contratual, antecipando a solução que viabilizasse a sustentação dos empreendimentos no cenário adverso.

Quer, portanto, na lei, quer no âmbito infralegal, é hora de se cristalizar a instrumentação de medidas céleres para o reequilíbrio dos contratos no Brasil. Muito se pode perder ao deixar temas de alto impacto transitarem desordenados nas prateleiras dos reguladores, num vai-e-vem que remete às ondas do mar.

E por falar em mar: volta-se ao barquinho virado no oceano revolto. O navegador tem a água entrando pelo nariz e luta para contatar o continente, em busca da ajuda prometida. “Socorro, meu barco virou!” – ele grita pelo rádio minguante. A resposta do outro lado chega seca e proverbial: “Peço que aguarde, senhor. A diretoria de barquinhos virados estará analisando o seu caso”. Fim.

[1] “Contratação incompleta de projetos de infraestrutura”, disponível em: https://www.researchgate.net/publication/372401108_Contratacao_incompleta_de_projetos_de_infraestrutura.