A reconfiguração do setor elétrico brasileiro

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O setor elétrico brasileiro vive uma reconfiguração profunda. A abertura total do mercado de baixa tensão (Lei 15.269/2025), com cronograma em até 24 e 36 meses, inaugura um ambiente mais dinâmico e competitivo.

Esse movimento, combinado com a chegada de novos produtos e serviços, a difusão acelerada da micro e minigeração distribuída (MMGD), o avanço da digitalização das redes, a expansão da eletromobilidade, a integração crescente de fontes renováveis intermitentes e a necessidade de enfrentar a pobreza energética, traz desafios à agenda regulatória. Tais desafios exigem coordenação, aprimoramento de instrumentos regulatórios e adoção de práticas alinhadas às melhores experiências internacionais.

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Trata-se de um novo paradigma no qual a rede deixa de ser apenas uma infraestrutura física para se tornar uma plataforma digital, descentralizada e com fluxos bidirecionais. Nessa transição, as distribuidoras passam a operar como verdadeiros operadores do sistema de distribuição (distribution system operators – DSOs).

A Associação de Distribuidoras de Energia Elétrica Latino-Americanas (Adelat) reforça, em seu DSO Brief (2025), que essa transformação não é apenas tecnológica, mas estrutural. O relatório da associação mostra que, em toda a América Latina, a expansão da geração distribuída aumentou a complexidade do sistema ao introduzir fluxos reversos, pressões de tensão, maior variabilidade locacional e demandas crescentes por automação, visibilidade da rede e gestão de dados.

Nesse novo contexto, a distribuidora deixa de ser um agente passivo que simplesmente expande e mantém ativos e passa a desempenhar funções típicas de um operador de sistema. Isso inclui coordenar recursos energéticos distribuídos, gerenciar capacidade, operar fluxo bidirecional, integrar armazenamento e contratar flexibilidade quando necessário.

No Brasil, a difusão acelerada da micro e minigeração distribuída, consolidada pelo Marco Legal da GD (Lei 14.300/2022), com inúmeros incentivos, introduziu uma nova dinâmica no setor. Ainda que esses mecanismos tenham desempenhado um papel importante na incorporação de novas tecnologias e na diversificação da matriz elétrica, a continuidade dessa expansão nem sempre esteve plenamente alinhada a critérios técnicos ou a um planejamento integrado de longo prazo.

As projeções da EPE são informativas do cenário: a capacidade instalada atual, de cerca de 40 GW, pode atingir entre 61,4 GW e 97,8 GW até 2035, com incremento de 9,5 milhões de consumidores. Esse cenário reforça a necessidade de aperfeiçoamentos regulatórios, incluindo adequada valoração dos respectivos custos e benefícios da MMGD sobre o sistema elétrico como um todo, especialmente sobre as redes de distribuição e os demais consumidores.

Há consenso, por exemplo, sobre a necessidade em aprimorar os mecanismos tradicionais de compensação, como o atual net metering brasileiro, baseado no simples balanço entre injeção e consumo. Embora importantes na fase inicial de expansão da MMGD, o sistema atual não reflete o uso real da rede e não remunera adequadamente seus custos. Além disso, o modelo vigente incorpora subsídios implícitos que se traduzem em custos adicionais para todos os consumidores, com impacto particularmente elevado sobre aqueles atendidos no mercado cativo.

Apenas em 2025, esses custos atingiram R$ 14,6 bilhões, podendo ultrapassar R$ 120 bilhões até 2030, conforme estimativas do portal Subsidiômetro da Aneel. Além do impacto financeiro direto, o modelo gera distorções nos sinais locacionais e temporais, afetando decisões de investimento e padrões de consumo, ao mesmo tempo em que compromete a modicidade tarifária e a sustentabilidade econômico-financeira das distribuidoras.

O diagnóstico reforça a necessidade de metodologias tarifárias aderentes ao uso bidirecional da infraestrutura e de marcos regulatórios que assegurem neutralidade de acesso à rede, tratamento isonômico entre os consumidores, eficiência e segurança em linha com as melhores práticas internacionais.

Por mais de duas décadas, o Brasil adotou modelos tarifários predominantemente volumétricos no ambiente de contratação regulada. Ou seja, um modelo de tarifas com base apenas na energia consumida (kWh), sem levar em consideração a capacidade utilizada da rede, o horário do consumo, o perfil de uso ou os custos reais associados ao pico de demanda.

Esse ambiente, apoiado por modelos regulatórios de incentivos impulsionou as distribuidoras em direção à eficiência (minimização de custos) e favoreceu a expansão do sistema e a estabilidade da remuneração do segmento e do custo de capital regulatório (Parcela B) baseada na expansão do mercado. Ainda assim, a remuneração de capital no segmento de distribuição permaneceu sistematicamente abaixo do nível considerado adequado pelas metodologias consagradas de avaliação econômico-financeira.

A Nota Técnica 124 do Ipea (2023), ao analisar a rentabilidade do setor numa perspectiva nacional e internacional, concluiu que, na última década, o segmento de distribuição no Brasil apresentou rentabilidade média negativa (spread de valor agregado). O retorno sobre o capital investido observado (ROIC) foi 2% inferior à rentabilidade adequada (WACC regulatório) para um modelo economicamente sustentável.

Na prática, as distribuidoras operaram, em média, com retornos econômicos insuficientes para sustentar o ciclo de investimentos, sobretudo aqueles relacionados associados à transição energética, como digitalização das redes, integração de recursos energéticos distribuídos e modernização da infraestrutura[1].

Nesse sentido, a agenda de modernização tarifária da Aneel, incluída na agenda regulatória do próximo biênio, bem como a metodologia de valoração dos custos e benefícios da MMGD, tema da Tomada de Subsídios 23/2025, consolida-se como eixo central para adequar o modelo tarifário brasileiro às transformações estruturais do setor. O objetivo é preservar a compatibilidade entre modicidade tarifária, qualidade do serviço e equilíbrio econômico-financeiro da concessão, os três vetores clássicos da boa regulação tarifária.

As iniciativas previstas incluem (i) a introdução de modalidades tarifárias com maior granularidade temporal (tarifas horárias) para baixa tensão (Tarifa Branca, tarifas flexíveis/inteligentes), inicialmente direcionadas a pequenos serviços e estabelecimentos comerciais de maior consumo,  com expansão progressiva para todo o segmento de baixa tensão; (ii) o fortalecimento do sinal de preço para induzir maior resposta da demanda e eficiência; (iii) a revisão da estrutura tarifária com ampliação da transparência; (iv) a precificação explícita de atributos como flexibilidade e (v) uso bidirecional da rede com valoração dos respectivos custos e benefícios ao sistema elétrico gerados pelas unidades com MMGD, entre outros.

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Essas medidas são essenciais para alinhar incentivos corretos, aumentar a eficiência do sistema e promover maior justiça tarifária, objetivos reiterados por reguladores internacionais. Modernizar a estrutura tarifária significa aprimorar a governança do setor: custos tornam-se mais visíveis, subsídios deixam de permanecer ocultos e a sociedade passa a dispor de instrumentos mais transparentes para avaliar a qualidade das decisões regulatórias e das políticas públicas do setor elétrico.


[1] Resultado corroborado em Rocha, Camacho e Bragança (2007); Brandão e Tommaso (2023) e KPMG/Instituto Acende Brasil.