Um Fed ‘singularmente estruturado’ e o possível fim das agências independentes nos EUA

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Nos próximos meses a Suprema Corte proferirá julgamentos decisivos. Além de se debruçar sobre a constitucionalidade de tarifas de importação definidas pelo chefe do Executivo, tema de profunda importância para a geopolítica mundial,  a Corte Roberts, dominada pelos conservadores e com uma trajetória recente de decisões que ampliam poderes presidenciais, também irá se debruçar sobre o detalhamento do alcance dos poderes do Presidente sobre as agências ditas independentes, e a autonomia do Banco Central (Fed, o “Federal Reserve”).

Conforme já abordamos ao comentar a ofensiva que Trump tem conduzido contra a autonomia das agências[1], o traço definidor das agências independentes nos EUA é o mandato de seus diretores, sendo vedada a demissão pelo Presidente antes de findo seu prazo, exceto quando haja “justa causa” (“for cause”)[2].  A justa causa costuma ser definida legalmente como “inefficiency, neglect of duty or malfeasance in office”, expressões que podem ser traduzidas um tanto superficialmente como ineficiência, negligência no exercício da função ou improbidade (ou malversação).

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Trump já demitiu ao menos 12 (doze) diretores de agências independentes sem aguardar o fim de seus mandatos. Muitos deles ou não ajuizaram ou desistiram de seus processos judiciais[3]. Mas três processos chegaram na Suprema Corte. Um primeiro, ainda em sede cautelar e sem previsão de análise de mérito, relativo a um membro do Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (“National Labor Relations Board”, NLRB, um tribunal administrativo que faz as vezes de justiça trabalhista), e outro do Conselho de Proteção de Sistemas de Mérito (“Merit Systems Protection Board”, MSPB, responsável pelos concursos e demissões de servidores).

Um segundo o caso diz respeito à demissão da diretora da Comissão Federal de Comércio (“Federal Trade Commission”, FTC), cuja audiência pública ocorre no dia 08 de dezembro próximo, e um terceiro, a ser julgado em janeiro, trata da demissão de Lisa Cook, uma das diretoras do Fed (“governor”, nos termos da legislação de criação do banco).

Vamos, nesse artigo, discutir o primeiro caso e deixar clara sua conexão com os demais, além de indicar alguns de seus potenciais impactos.

No primeiro caso, em decisão cautelar controvertida[4] tomada em maio deste ano, a Corte manteve a demissão pelo governo Trump dos diretores do NLRB e do MSPB. A exoneração foi assumidamente sem justa causa e no curso dos mandatos dos diretores. A Corte decidiu que, enquanto as partes aguardam o julgamento do caso nas instâncias inferiores, deve prevalecer a decisão de Trump de exonerar, mas não disse se efetivamente julgará o caso no seu mérito.

A decisão cautelar chama a atenção por contrariar expressamente o Direito estabelecido acerca das agências independentes. Foi aceito – mesmo que provisoriamente – ação presidencial que colide com um aspecto essencial do Direito Administrativo, sem fazer qualquer anúncio quanto a eventual julgamento de “mérito”.

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A justificativa veio em dois parágrafos. Foi afirmado que cabe ao chefe do Executivo demitir sem justa causa aqueles que exercem as atividades executivas “em seu nome”, exceto nas hipóteses restritas delineadas pela Corte, mencionando o caso Seila Law LLC v. Consumer Financial Protection Bureau[5]. Aduziu ainda que entendia provável que o Governo demonstrasse que o NLRB e o MSPB exercem “considerável poder executivo”, mas que não decidiria se as duas agências se enquadrariam entre as exceções em que a exigência de justa causa seria válida, deixando esse assunto para decisão final de mérito (que não se sabe se virá).

A motivação da Corte, portanto, indica uma tendência para deixar assentado que o exercício de atividades executivas, ou de “considerável poder executivo”, permitiria a livre exoneração pelo Presidente. Há nisso uma contrariedade às leis instituidoras da maior parte das agências independentes, que exigem justa causa. Observe-se que esta ideia é apresentada com naturalidade, como se fosse a orientação estabelecida no direito estadunidense.

Não é.

No voto vencido relativo à decisão cautelar, a Ministra Elena Kagan (acompanhada pelos ministros Sotomayor e Jackson) classificou a decisão como “nada menos que extraordinária”. E afirmou o óbvio: a ordem judicial contraria um precedente de noventa (90) anos, o caso Humphrey’s Executor v. United States, no qual a Corte deixou assentada a constitucionalidade de uma forma de governança em que colegiados bipartidários, cujos membros um presidente não poderia destituir sem justa causa, desempenhariam funções baseadas em conhecimento especializado com certo grau de independência do controle presidencial. Afirmou ainda que “embora nossa pauta de emergência seja adequada para algumas situações, ela não deve ser usada para revogar ou revisar o Direito existente” – ou seja, não seriam as decisões emergenciais o contexto adequado para alterar o Direito em vigor, sem as salvaguardas de um processo com amplo contraditório e debate público[6].

Ainda mais surpreendente é o fato de a Corte, como disse a Ministra Kagan, do nada (“out of the blue”), afirmar uma suposta “singularidade” da estrutura do Fed. Nos estreitíssimos limites da pauta emergencial da Corte, e sem que esta questão fosse objeto do julgamento, a Corte se preocupou em indicar que a sinalização feita na decisão, muito clara no sentido da extinção das agências independentes, não se aplica ao Fed por este ser “singularmente estruturado, uma entidade quase-privada que segue a distinta tradição histórica do Primeiro e do Segundo banco dos EUA”.

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A ressalva por certo visa a assegurar “os mercados” quanto ao resultado do litígio que, este sim, será levado a julgamento pela Corte nos próximos meses. Trata-se do terceiro caso que mencionados, relativo à exoneração de Lisa Cook, uma das diretoras (“governors”) do Fed. Nesse caso, ao contrário dos outros, a diretora foi mantida pela Corte no cargo enquanto aguarda julgamento.

O segundo caso, também a ser julgado pela Corte, relativo à demissão da diretora da FTC, também trará consequências para os destinos dos diretores do NLRB e do MSPB. E, ainda mais importante, para a existência de agências independentes no país que as criou.

Decidindo pelo poder do Presidente de demitir, a Suprema Corte limitará a liberdade do Poder Legislativo para criação de agências independentes e de estruturas variadas de governança, incluindo órgãos de controle e a instituição de freios contra eventuais arbitrariedades no âmbito do Executivo.

Uma decisão assim tem o condão de mover placas tectônicas do Direito Administrativo estadunidense, de onde as agências independentes se originaram para se expandirem pelo mundo. Sobretudo após o “Consenso de Washington”, elas passaram a compor o arranjo institucional de países europeus, latinoamericanos, como é o caso do Brasil, e mesmo de países asiáticos[7].

Por esta razão, entendemos que esses casos devem ser seguidos de perto. É o que continuaremos a fazer em próximos artigos sobre o tema.


[1] Sobre o tema, vide https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-ofensiva-de-trump-contra-a-autonomia-das-agencias-2  e https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-ofensiva-de-trump-contra-a-autonomia-das-agencias. Acesso em 27/11/25.

[2] Ainda que diversos fatores possam contribuir para uma maior ou menor autonomia das agências, na realidade política e administrativa.

[3] https://www.politico.com/news/2025/06/30/trump-firings-federal-agencies-00432223. Acesso em 27/11/25.

[4] As decisões ou pautas emergenciais, ou cautelares, da Corte (“emergency docket” , como usualmente referidas, ou “shadow docket”, na descrição mais crítica) são geralmente cercadas de polêmica. A controvérsia se dá pelo fato de a Corte, sem a oitiva das partes, apresentação de todas as razões, e sem um contraditório mais detido mesmo entre os ministros, definir questões fundamentais para a sociedade estadunidense. Tem se tornado usual, inclusive, que algumas questões nem venham a ser enfrentadas na Corte em julgamentos “de mérito”, com pleno contraditório. Embora tenham sempre existido, essas decisões recentemente aumentaram significativamente em número e, sobretudo, em importância.

[5] No caso Seila Law LLC v. Consumer Financial Protection Bureau, 591 U. S. 197, 215−218 (2020), a Corte declarou inconstitucional a removal protection clause de uma agência considerada independente, o Consumer Financial Protection Bureau (CFPB). O CFPB foi criado pela Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act, lei posterior à crise bancária de 2008, e instituído como agência reguladora independente com a finalidade de garantir que as ofertas de crédito ao consumidor sejam seguras e transparentes. A Corte entendeu que, por se tratar de uma agência com dirigente único, haveria excessiva concentração de poder executivo em uma única pessoa, não eleita e sem reportar-se ao Presidente.

[6][6] “Uma coisa é conceder uma medida cautelar dessa forma quando isso garante direitos estabelecidos, que de alguma forma os tribunais inferiores desconsideraram. Outra coisa completamente diferente é ignorar o processo usual de apelação ao emitir uma ordem que, por si só, altera o Direito”.

[7] Sobretudo a partir do “Consenso de Washington”, elas passaram a compor o desenho institucional da União Europeia, de inúmeros países europeus e da América Latina. GILARDI, Fabrizio. Delegation in the regulatory state: independent regulatory agencies in Western Europe. Cheltenham: Edward Elgar, 2008. p. 106 e ss.