Orçamento para a guerra: quando o dinheiro público pode ser usado para matar

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O conflito na Faixa de Gaza atormenta o mundo com as atrocidades das guerras que têm se intensificado nos últimos tempos. Como se já não bastasse o já longo período de conflito no território da Ucrânia, agora o planeta se vê às voltas com um novo confronto de alto poder destrutivo e que também pode assumir proporções mundiais.

Como os Estados, em especial o Brasil, lidam com as despesas destinadas às guerras externas, é uma questão pouco conhecida e estudada no âmbito das finanças públicas e do Direito Financeiro. Mais uma distorção injustificável, pois os recursos são públicos e extremamente elevados, como se pode constatar em uma análise bastante superficial.

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E têm aumentado bastante nos últimos anos. “Gastos militares globais atingem recorde histórico em 2021”, noticiou o Poder360, ultrapassando pela primeira vez a marca de US$ 2 trilhões. Um aumento de 0,7% em relação ao ano anterior (2020) e 12% acima do que havia sido gasto dez anos atrás, em 2012, sendo o sétimo ano consecutivo de crescimento dessa despesa[1]. A guerra na Ucrânia foi responsável por boa parte do crescimento das despesas militares, que atingiram o recorde de 2,240 trilhões de dólares. Mas o crescimento dos gastos militares no mundo todo tem sido contínuo na última década, aumentando 19% no período 2013-2022, sendo crescente desde 2015[2].

O recente conflito entre o Hamas e Israel motivou os EUA a pedir ao Congresso, nesta semana, suplementação orçamentária para fazer frente aos gastos extras[3], acrescentando recursos àquele que é, de longe, o maior orçamento do mundo em despesas militares. Um valor que, calcula a Folha de S. Paulo, equivale a um Bolsa-Família por dia[4].

Os EUA despontam como o país com gasto militar mais elevado do planeta, estimado em 877 bilhões de dólares em 2022, que equivale a 39% dos gastos militares globais, superando em muito o segundo colocado, a China, com aproximadamente 292 bilhões de dólares[5]. O Brasil ocupa a 17ª posição na lista dos países em função das despesas militares, com aproximadamente 20 bilhões de dólares em 2022[6], sendo, de longe, em termos absolutos, o maior orçamento militar dentre os países da América Latina, embora não ocupe a primeira posição se analisado em relação ao PIB, ao número de habitantes ou à área territorial[7]. Registre-se que seus gastos decresceram em 2022, reduzindo em 7,9% em comparação com o ano anterior de 2021[8].

No Brasil, a política de segurança nacional é essencialmente exercida no âmbito do Ministério da Defesa, o que permite inferir que a quase totalidade das despesas com essa política pública integra o orçamento desse órgão sob o aspecto institucional. E é uma das maiores fatias do orçamento por esse critério, o que demonstra serem gastos altamente significativos, como se verá a seguir.

O artigo 142 da Constituição dispõe sobre as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, que ficam submetidas ao comando do Presidente da República, e têm a finalidade de defender a Pátria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.

Marinha, Exército e Aeronáutica são órgãos da administração pública federal que integram o Ministério da Defesa, e sob o ponto de vista orçamentário, constituem-se em unidades orçamentárias próprias – Comando da Aeronáutica (52101), Comando do Exército (52121) e Comando da Marinha (52131), que, juntamente com várias unidades orçamentárias compostas por outros órgãos e fundos, estão localizadas no órgão setorial Ministério da Defesa (52000).

No orçamento federal de 2023 (Lei 14.535/2023), o Ministério da Defesa (órgão 52000) tem dotação de R$ 122 bilhões[9], e a previsão que consta do Projeto de Lei Orçamentária para 2024 não difere muito, sendo da ordem de R$ 126 bilhões. O Exército tem a maior dotação, praticamente equivalente à soma da Marinha com a Aeronáutica. Na LOA 2023, o Exército tem dotação de R$ 53 bilhões, a Marinha, R$ 31 bilhões, e a Aeronáutica, R$ 26 bilhões. Dados importantes sob o ponto de vista orçamentário podem ser obtidos pela análise da classificação orçamentária por função, que agrega os valores na Função Defesa Nacional.

O Ministério da Defesa estabelece o planejamento nacional do setor por meio da Política Nacional de Defesa, documento em que contextualiza e conceitua a política de defesa, definindo seus objetivos nacionais, e a Estratégia Nacional de Defesa, onde especifica as estratégias e medidas a serem adotadas para atingi-los. Destaque-se, sob o ponto de vista orçamentário, a AED (Ação Estratégica de Defesa) 14: “Buscar a destinação de recursos orçamentários e financeiros capazes de atender as necessidades de articulação e equipamento para as Forças Armadas, por meio da Lei Orçamentária Anual, no patamar de 2% do PIB”, meta que, para ser atingida, exigirá significativo aumento das despesas do setor.

O planejamento orçamentário consta dos planos plurianuais, estando em vigência, até o final desse ano, o plano plurianual 2020-2023 (Lei 13.971/2019), com três programas previstos no âmbito do Ministério da Defesa: Cooperação com o Desenvolvimento Nacional (6011), Defesa Nacional (6012), e Oceanos, Zona Costeira e Antártica (6013), no que não difere da previsão do projeto de PPA apresentado para o período 2024-2027, com os mesmos programas e diferentes numerações: Cooperação da Defesa para o Desenvolvimento Nacional (6111),  Defesa Nacional (6112), Oceanos, Zona Costeira e Antártica (6113).

Nos gastos públicos do setor de defesa nacional, as despesas com investimentos são altas, dada a necessidade da grande quantidade de equipamentos de alto custo, como materiais bélicos, que incluem tanques de guerra, aviões, navios e submarinos nucleares.

No entanto, a preponderância é de gastos com pessoal, que representam a parcela mais significativa, mesmo porque o efetivo das Forças Armadas é também bastante elevado, o que é natural em um país de dimensões continentais como o Brasil, com extensa área litorânea e de fronteiras terrestres. De qualquer forma, cerca de 80% das despesas do setor é um montante elevado para gastos com pessoal, e, desse montante, a maior parte, em torno de 60%, vai para o pagamento dos inativos, que representam, portanto, um peso significativo no orçamento destinado à Defesa Nacional[10].

O fato é que, não obstante a necessidade que qualquer país tem de manter um sistema de defesa robusto e eficiente, os recursos que todos os países do mundo alocam para as atividades militares são altos demais. Em um mundo que luta pela paz e harmonia entre os povos, em que as Constituições colocam isto como objetivo fundamental de todo Estado, é difícil justificar tanto dinheiro ser destinado para a guerra, ainda que seja para se defender ou para evitá-la. Guerras trazem muito sofrimento e mortes, e gastar dinheiro com isso parece bem pouco sensato e razoável.

O economista Paul Samuelson, Nobel de Economia em 1970, em sua clássica obra de introdução à economia “Economics”, formulou o exemplo até hoje muito conhecido do trade-off entre “canhões e manteiga” para explicar as dificuldades das decisões econômicas.  O aumento na produção de “manteiga” (gastos civis) importa na redução na produção de “canhões” (gastos militares), e vice-versa. No entanto, muitas vezes o gasto em canhões é necessário para manter a produção de manteiga.

A tecnologia evoluiu muito, hoje é muito mais fácil e barato produzir tanto canhões como manteiga. Mas é triste saber que ética, moral e espiritual do ser humano parece não ter evoluído muito, e o dilema de Paul Samuelson continua atual até hoje.

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[1] https://www.poder360.com.br/internacional/gastos-militares-globais-atingem-recorde-historico-em-2021/

[2] Trends in World Military Expenditure, 2022. Sipri Fact Sheet, april 2023 (https://www.sipri.org/publications/2023/sipri-fact-sheets/trends-world-military-expenditure-2022).

[3] Casa Branca envia ao Congresso pedido de orçamento suplementar de segurança, viando Israel (Portal GZH Mundo, 20.10.2023 – https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/noticia/2023/10/casa-branca-envia-ao-congresso-pedido-de-orcamento-suplementar-de-seguranca-visando-israel-clnyzoavu00by01hbu3t02tt3.html#:~:text=Em%20comunicado%2C%20o%20governo%20americano,em%20Israel%20e%20em%20Gaza).

[4] Gasto militar global equivale a um Bolsa Família por dia em 2020. Folha de S. Paulo, 25.2.2021 (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/02/gasto-militar-global-equivale-a-um-bolsa-familia-por-dia-em-2020.shtml).

[5] Portal Uol, 24.4.2023, Gastos militares globais crescem pelo oitavo ano seguido (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2023/04/24/gastos-militares-globais-crescem-pelo-oitavo-ano-seguido.htm).

[6] Vide nota de rodapé 2, p. 2.

[7] Pedro Jucá Maciel, Defesa e Política Fiscal no Brasil. Apresentação, setembro de 2010 (https://www.joserobertoafonso.com.br/defesa-e-politica-fiscal-no-brasil-maciel/). (https://pedrojucamaciel.com/?s=defesa). Proporcionalmente ao PIB, o Brasil ocupava em 2019 a 77ª posição (Instituição Fiscal Independente – IFI, Nota Técnica 45, 3 de setembro de 2020, p 19).

[8] “Brazilian President Jair Bolsonaro forged close ties with the armed forces during his time in office (2019–22), but this did not lead to increased funding for the military; instead, military spending decreased every year during the Bolsonaro administration, falling by 16 per cent overall between 2019 and 2022” (Trends in World Military Expenditure, p. 8).

[9] Que corresponde a pouco mais de 2% do orçamento total da União de 2023, de 5,345 trilhões de reais (Lei 14.535;/2023).

[10] Aposentados e pensionistas consomem 62% das despesas com pessoal das Forças Armadas. Gazeta do Povo, Blog do Lúcio Vaz, 24.10.20223.