Alguns livros ajudam a reorganizar o modo como enxergamos instituições que já estavam ali, atuando há décadas, mas ainda sem um contorno claro na consciência coletiva. Nada será como antes, de João Villaverde, faz isso ao reconstruir a trajetória do Tribunal de Contas da União entre os impeachments de 1992 (Fernando Collor) e 2015-2016 (Dilma Rousseff).
Não é apenas um estudo sobre o TCU; é um estudo sobre como instituições ganham peso — às vezes de modo discreto, às vezes de forma acelerada por crises políticas.
Por que o livro vale a leitura?
O livro tem um efeito interessante: ao mesmo tempo em que apresenta uma interpretação específica sobre a trajetória do TCU, convida o leitor a construir suas próprias conclusões. As entrevistas revelam percepções que não costumam aparecer em documentos oficiais; a análise histórica contextualiza a transformação institucional; e a escrita, muito envolvente, mantém ritmo constante, equilibrando clareza e leveza com densidade analítica.
Villaverde demonstra que compreender o TCU é indispensável para entender o funcionamento do atual sistema político brasileiro. Depois de 2015-2016, dificilmente um tema relevante escapa do radar da instituição — e a obra contém dados interessantes sobre como chegamos a esse ponto.
Nada será como antes reconstrói, com método e sensibilidade, o processo pelo qual o TCU deixou de ser uma instituição pouco visível para se tornar um ator decisivo no presidencialismo brasileiro.
É uma leitura que informa, instiga e ajuda a compreender peça essencial do Estado brasileiro contemporâneo.
O fio condutor: a compreensão das mudanças no perfil da instituição
Como o TCU se tornou ator central no debate público brasileiro? Essa é a pergunta que move o livro.
Villaverde parte dessa inquietação e a desenvolve com base em entrevistas realizadas com figuras que viveram os dois impeachments — líderes partidários, sindicalistas, ministros e parlamentares. Esse material dá ao texto uma dimensão concreta, real, permitindo observar como diferentes atores percebem o Tribunal e como suas avaliações sobre a instituição evoluem ao longo das décadas.
Um mérito do livro é tratar o TCU não apenas pela ótica das normas, mas pela lógica das relações de poder. A narrativa deixa evidente que instituições de controle não se explicam só pelo Direito: elas se explicam, sobretudo, por como são acionadas, pressionadas e posicionadas em momentos decisivos.
A hipótese da “ascensão constitucional”
Villaverde sugere que o tipo de fortalecimento ocorrido com o TCU corresponderia aos objetivos da Constituição de 1988 e de seus formuladores. Isso porque o novo arranjo institucional, concebido na virada do regime militar para a democracia, teria buscado ampliar controles horizontais para limitar abusos do Executivo e reforçar a accountability estatal.
É uma hipótese interessante. Mas vale registrar uma nuance: se a hipertrofia atual do TCU fosse mesmo parte do projeto constitucional, seria natural que ela encontrasse respaldo no próprio texto de 1988. É fato que a Constituição ampliou significativamente as competências dos controles — incluindo o de contas. Mas dela não se extrai necessariamente o tipo e a extensão do protagonismo que o Tribunal acabou assumindo.
Uma explicação alternativa, a partir dos próprios achados do livro, é que o crescimento do TCU pode ter decorrido menos do incremento de papeis e funções promovido pelo novo arranjo constitucional e mais de movimentos da política pós-1988 — com a fragmentação do presidencialismo, o incremento da judicialização e a migração da tomada de decisões de todo tipo para instâncias de controle.
O TCU ocupou o espaço da política?
O livro também sugere que, no impeachment de 2015-2016, o TCU teria preenchido um espaço que, em 1992, fora ocupado por partidos e movimentos sociais. A comparação é instigante e ajuda a estruturar a narrativa histórica.
Mas talvez não se trate exatamente de substituição de atores. O que pode ter ocorrido foi a fragilização do Executivo como locus prioritário de governo. Na esteira dessa transformação, instituições de controle — TCU, Supremo Tribunal Federal, Ministério Público — passaram a funcionar como arenas relevantes para certas decisões, mesmo elas não fazendo parte de seu desenho constitucional. Os partidos continuam presentes, apenas passaram a disputar também nesses novos espaços.
Em outras palavras: o TCU não teria tomado o lugar da política; ele teria se tornado um dos lugares onde a política se faz.