A regulação de preços no Brasil já dura mais de 20 anos e passou no teste de Análise de Impacto Regulatório com nota alta. Esta avaliação realizada pelo governo afiança que “Passou-se de um cenário marcado por desabastecimento, fraudes, falsificações e preços abusivos para um cenário de garantia do acesso aos medicamentos, com segurança sanitária, previsibilidade regulatória e estabilidade, investimentos crescentes em inovação, demonstrado pela quantidade de pleitos de novos medicamentos advindos de indústrias de capital nacional. Mais do que isso, muitos produtos têm entrado primeiro no Brasil do que em outros países do mundo, o que impõe desafios à CMED para que se busque mecanismos adequados para precificação”.
O reconhecimento do resultado positivo trazido pela regulação do setor de medicamentos, que teve início em 2001 com a criação da CAMED, depois com a sua sucessora e atual CMED em 2003, significa que devemos ter cautela no esforço de aperfeiçoar porque o que hoje é considerado bom pode piorar.
Para se introduzir qualquer alteração é preciso entender e preservar o pilar mestre que sustenta toda a regulação, conhecer a história e evitar a repetição de erros do passado.
O modelo de teto de preços não foi escolhido ao acaso, ele veio substituir o tabelamento.
O sistema de tabelamento impõe um preço único para diferentes custos de transações e só se viabiliza se for tabelado pelo preço mais alto como forma de abrigar todas as empresas. Hoje ainda existe quem defenda a utilização de um tabelamento pelo menor preço praticado dentre todos os fornecedores de um mercado, mas o resultado conhecido é o desabastecimento e a saída de diversas empresas daquele mercado, como ocorria no passado.
O atual modelo de teto de preço é adequado para o Brasil dado a sua estrutura composta por inúmeros agentes que adquirem medicamentos (governo federal, estadual, municipal, distribuidores, farmácias, hospitais, clínicas, planos de saúde etc.), diferente dos países da Europa, por exemplo, onde o Estado é praticamente o único comprador.
A racionalidade econômica explica que é viável fazer uma venda por um preço mais baixo para o governo quando este centraliza uma compra de grande volume, com garantia de pagamento, planejamento de escala, entrega em um único ponto, enfim, esta transação tem um baixo custo que pode se reverter em desconto.
O contrário disso – baixo volume, risco de inadimplência, ausência de planejamento de escala e frete incluso para pontos distantes – não viabiliza um desconto semelhante, logo, o mesmo medicamento precisa ser fornecido por preços diferentes.
É crescente no Brasil o debate entorno da judicialização: por que ela acontece? Como evitar? Como é uma realidade que se impõe, que preço pagar?
A saúde, por ser área fundamental para a população e ter sua gestão como tarefa precípua governamental garantida na Constituição Federal, está especialmente sujeita a isto. No caso específico da assistência farmacêutica, a Constituição garante que é um direito de todos sem delinear limites.
Na página da CMED constam 26.763 apresentações de medicamentos; no anuário estatístico, 1.914 princípios ativos; e em nota oficial publicada pelo Ministério da Saúde consta que a Rename 2024 “reúne cerca de mil medicamentos e insumos essenciais” utilizados no SUS.
Portanto, existem muitos medicamentos que não estão disponíveis no SUS que acabam sendo judicializados e não estou afirmando que deveriam ou não serem judicializados, só trago os números.
O fornecimento nesta modalidade é ruim para o sistema, para as empresas que fornecem e muito pior para os pacientes. Para o sistema porque desorganiza a execução do orçamento e pode faltar recurso para outras áreas de atenção; para os fornecedores porque precisam atender de imediato decisões judiciais aumentando os custos desta transação; e para o paciente porque o tempo de espera pode agravar a doença.
Não existe solução fácil para um problema tão complexo. Concluir que a judicialização ocorre porque empresas que obtêm registro da Anvisa não pedem preço na CMED é focar na exceção e não na regra. Talvez hoje se procurarmos bastante encontraremos duas ou três empresas que fazem isso e resolveríamos este assunto rapidamente aplicando as multas pesadas que a legislação já estabelece.
Em 2015 a Interfarma fez um levantamento sobre todas as vendas por judicialização para o Ministério da Saúde. Os dados encontrados revelaram que os dez itens mais importantes, em termos de valores, representavam 93,5%, ou R$ 1,07 bilhão. Nenhum dos medicamentos estava incorporado no SUS. Um único medicamento não tinha registro na Anvisa e os outros nove tinham registro e preço aprovado na CMED.
Agora, em 2025, a Interfarma avaliou mais de 4.000 pedidos de medicamentos por via judicial desde 2022. Os dados demonstram que 57,5% dos pedidos continham medicamentos já incorporados pela Conitec, portanto com preço aprovado, e os que não têm preço é porque não obtiveram ainda registro sanitário.
Naquele momento a sugestão dada foi de priorizar estes dez medicamentos, com análise detalhada para avaliar a possibilidade de incorporação ou, se não fosse o caso, convocar as empresas para dialogar e resolver o problema. Com isso, 93,5% do custo com judicialização estaria resolvido.
A sugestão agora é priorizar a disponibilização de medicamentos já incorporados, reduzindo-se drasticamente o número de ações. A recomendação é reforçada pelos dados apresentados pelo próprio Ministério da Saúde no congresso Fonajus de 2025, nos quais cerca de 50% dos quase R$ 2 bilhões em judicialização se trata de moléculas já incorporadas pela Conitec.
Entre os medicamentos não incorporados pela Conitec e solicitados por via judicial, 9 entre 10 moléculas mais solicitadas possuem genéricos, similares ou biossimilares e 71,6% custam menos de R$ 1.000, ou seja, todos com preço aprovados.
Por último é fundamental também anotar que a CMED criou o CAP (Coeficiente de Adequação de Preços), que garante uma redução de 21,53% para as vendas ao governo federal, estadual, municipal, ou por ordens judiciais, resultando no Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG).
Para além da CAP, não existe fórmula mágica para controlar o preço da judicialização. Tentar tabelar o preço usando um critério de hierarquia reversa, que considere o menor preço praticado em uma venda, sem levar em conta quais condições estavam presentes para viabilizar tal preço, certamente prejudicará o paciente que terá dificuldade ou não será atendido.